quinta-feira, 7 de junho de 2007

BOLSA DE VIAGENS - ÍNDIA DE SOUZA

Em Viagem

Quem pensava que já não exis­tiam aventureiros portugueses enganou-se. Tivemos, recente­mente, o privilégio de conhecer uma verdadeira aventureira do século XXI. Chama-se índia, tem 39 anos e é do signo Carneiro com ascendente em Leão. Nasceu em Lisboa e, apesar de ter um bilhete de identidade português, diz que as suas raízes já não estão em Portugal. É o oposto do turis­ta clássico. Ao fim de dezanove anos de viagens, as fronteiras dei­xaram de fazer sentido para ela. A sua família passou a ser a huma­nidade.

índia acha muito importante viajar para aprender e alargar os seus horizontes. "O ideal é não viajar apenas para conhecer os sítios turísticos, mas também para conhecer e conviver com outras culturas". Perdeu uma posição na sociedade, uma família e um emprego estáveis, mas não se arrepende nem um minuto. Acha até que ganhou muito mais com a escolha.

Hoje, vive em Daramsala, num instituto de língua e filosofia tibetana, dirigido pelo Dalai Lama. Daramsala é uma pequena aldeia nas montanhas (2000 m), a 400 quilómetros da fronteira com o Tibete, onde vivem dez mil tibetanos — a maior comunidade residente no estrangeiro — c uma população flutuante de cerca de 300 ocidentais que costumam ir para lá passar temporadas de estudo e meditação. Mas este número de visitantes estrangeiros tem aumentado de ano para ano e índia conta-nos que gente famosa como Richard Gere, Cindv Crawford, Harrison Ford, Mme Mitterrand, Shirley MacLaine c cientistas de renome são alguns dos habitues e seguidores do budismo tibetano do Dalai Lama.

Na opinião de índia, conhece-se mais gente interessante em quinze dias de Daramsala do que em quinze anos de Portugal.

Confessa-nos que é um sacrifí­cio ter de vir a Portugal ou a qualquer grande cidade, pois tem dificuldade em lidar com o lado material, com a burocracia e com a constante correria com que toda a gente se atropela. Em contra­partida, diz ter um relacionamen­to muito fácil com as pessoas, embora seja difícil lidar com os habitantes de uma cidade grande. "As pessoas andam muito des­confiadas. Se lhes sorrio ficam logo desconfiadas e a pensar quais serão as minhas inten­ções..."

Não tem nada contra o pro­gresso, mas critica bastante a dependência de um materialismo desenfreado c uma total falta de valores espirituais. Acha que, no Oriente, as pessoas sofrem fisica­mente e, no Ocidente, sofre-se espiritualmente. E é neste campo que gostaria de trabalhar no futu­ro: ajudar a fazer a ponte entre o Ocidente e o Oriente e contribuir para um maior equilíbrio da soci­edade actual.

VOLTA AO MUNDO EM DEZANOVE ANOS

índia começou a viajar após a Revolução do 25 de Abril. Nessa altura, mal sabia que iria correr mundo durante tanto tempo. O relato dos últimos dezanove anos em que, de imprevisto em impre­visto, acabou por dar a volta ao mundo, dariam para encher vá­rios livros e inspirar muita gente. Mas enquanto eles não existem, aqui fica uma breve descrição de uma maneira diferente de encarar a vida.

Aos vinte anos, foi para a Alemanha com a intenção de estudar, mas acabou por ficar a trabalhar em bares de estudantes durante dez meses. Depois veio a Portugal de férias e, enquanto estava no Algarve, resolveu res­ponder a um anúncio que pedia hospedeiras de bordo para a Royal Air Moroc.

Foi aceite e rapidamente se mudou para Casablanca, só que descobriram que usava lentes de contacto e, como tal, não poderia trabalhar em aviões. Deram-lhe um bilhete de volta, mas optou por ficar num hotel clandestinamente. Aproveitou para viajar por todo o país e conheceu um francês com quem acabaria por viver em Paris, durante dois anos. Foi uma época culturalmente muito rica. Mas o bichinho de viajante já se tinha instalado e resolveu procurar emprego numa das villages do Club Méditerranée. Como já conhecia Mar­rocos muito tem, mandaram-na para o Club de Marrakech por seis meses. Depois, foi colocada, por igual período de tempo, no Egipto, onde aproveitou para conhecer o país.

À boleia no Brasil

Mais tarde foi para Salvador da Bahia. Depois dos seis meses de trabalho, viajou um ano à boleia (todo o Nordeste, Amazónia, Mi­nas Gerais e Mato Grosso). Quando o dinheiro acabou, foi trabalhar para São Paulo em "relações públi­cas". Com a car­teira cheia, partiu outra vez à boleia e andou oito me­ses pela Bolívia, Peru, Chile e Ar­gentina. Voltou para Salvador e abriu uma dance-taria juntamente com mais três amigos do Club Méd.

Artesanato com os índios

Entretanto, foi a Porto Seguro com a intenção de tirar duas sema­nas de férias, mas ficou dois anos ausente. Andava muito a pé pelas praias dos arre­dores de Porto Seguro, que na altura quase não tinham turistas, e acabou por descobrir uma pequena aldeia de pescadores indígenas, onde comprou uma casa que, na época, lhe custou 85 dólares. Durante o ano que mo­rou nesta aldeia, viveu do ar­tesanato que fazia com os caboclos e índios da região e cuidava do seu jardim de abacaxis e bananas.

De vez em quando ia a Porto Seguro para comprar mantimen­tos e, numa dessas idas, soube
que um dos sócios da danceteria ia dar uma festa de despedida. Sem voltar a casa, para fechar a porta e arrumar algumas coisas, resolveu lá ir. Só que o destino, mais uma vez, a esperava: conhe­ceu um francês que precisava de tripulação para levar um barco até ao Rio de Janeiro e embarcou com ele, sem pensar duas vezes. Ao fazerem uma escala em Búzios, conheceu uma francesa dona de um restaurante e abando­nou o barco para ficar a trabalhar com ela durante um mês. A ideia era ganhar algum dinheiro para poder voltar para Porto Seguro.

Numa visita à marina do Rio de Janeiro acabou por visitar um veleiro que estava de partida para as Antilhas. Um tripulante a menos e índia já estava dentro do barco, pronta para viajar. Na altura, tinha 26 anos e achou que poderia ser a oportunidade para visitar o México.

A caminho das Antilhas

Acabou por sair na ilha de Barbados. Um dia roubaram-lhe as poucas economias que tinha e foi obrigada a fazer artesanato para vender aos turistas, até que embarcou num barco, que voltava para os EUA. Desembarcou na ilha de Santa Lúcia e trabalhou como cozinheira num veleiro de um alemão que ia dar a volta ao mundo.

Taiti à vista

Fizeram escala no Panamá, Galápagos e Taiti. Nesta pequena ilha tentou arranjar trabalho, porque não se deu muito bem com o comandante e ficou a tra­balhar num veleiro de charter, durante nove meses. Foi nesta altura que resolveu adoptar o nome de índia, mas não fez as alterações necessárias nos docu­mentos devido à excessiva buro­cracia.
De cargueiro para as ilhas Fiji Embarcou depois num carguei­ro para as ilhas Fiji, passando por Samoa e Tonga e um veleiro para a Austrália (Brisbane). Quando desembarcou tinha apenas cin­quenta dólares. Foi para sul — Surfers Paradise — e, ao fim de uma hora, já tinha arranjado traba­lho e alojamento próximo da praia.

No deserto da Austrália

Na Austrália, ganhava-se muito dinheiro e, ao fim de dois meses de trabalho, comprou um carro e começou a viajar pelo litoral, até algumas centenas de quilómetros depois de Adelaide. Só parava nas cidades para comer e dormia ao relento, nas reservas florestais. Era comum acordar com cangurus, raposas e outros animais à sua volta. Com a validade do visto a acabar, voltou para Sydney (pelo deserto) mas os últimos 400 quiló­metros teve de fazê-Ios à boleia, já que o carro pifou de vez. Como tinha de sair da Austrália, com­prou um bilhete de avião, em segunda mão, para a
Nova Zelândia (ilha do Sul).
Conta-nos que a natureza deste país é deslumbrante e pas­sava os dias a a:.tíar pelas monta­nhas. Caminhava uma média de seis ou sete horas por dia e dor­mia em cabanas próprias para via)antes. Ao fim de três meses, e á sem dinheiro, resolveu voltar para Sydney e trabalhar intensa­mente num restaurante (cerca de dezasseis horas por dia durante seis meses). O que ganhou per­mitiu-lhe ficar quatro anos sem trabalhar.

Comprou outro carro e, desta vez, subiu pela costa norte até Cairns, na altura uma autêntica cidade do fim do mundo. No caminho, ia parando nos albergues de juventude para oferecer boleias pagas, que davam para pagar a gasolina. Trabalhou num bar, perto de Cape Tribulation mas, ao fim de dois meses, voltou a Cairns para assistir a um concerto dos Dire Straits e acabou por embar­car num veleiro de um casal de franceses que ia para as Filipinas.

Mar de piratas

No caminho, foram persegui­dos por piratas por duas vezes. Em ambas as alturas tiveram sorte por ser de noite, tendo con­seguido despistá-los. Caso con­trário não teriam continuado via­gem. Diz que o esquema deles é violar as mulheres, matar toda a gente, roubar o que possam e afundar os barcos para não deixar vestígios. Nas Filipinas não con­seguiu entrar no Yacht Club, para arranjar outro barco, e acabou por ir de avião para Hong Kong.

O seu desejo era viajar para a China, que tinha acabado de abrir as suas fronteiras aos estrangeiros, só que era muito caro e havia que viajar em grupo com guia a acom­panhar. A alternativa era entrar como estudante e conseguiu arran­jar uma carteira de estudante na Formosa. Optou por ir para o Sudoeste, província de Yunnan, onde viviam os grupos étnicos mais pequenos, até chegar à fronteira com o Vietname e o Laos. Acabou por morar um mês com uma tribo que nunca tinha visto ocidentais. Depois desceu o rio Amarelo e voltou para Hong Kong.

Ao fim de cinco meses de China, foi para a Tailândia. Viajou pelo Norte e Nordeste e ficou a morar na ilha de Koh Phangan (Sul). Fazia Tai Chi Chuan, nada­va muito e começou a fazer medi­tação. Passados dois anos, resol­veu ir de férias à índia e percorreu o país todo em seis meses.

Tibetanos no Everest

Depois foi para o Nepal e, num trekking ao campo-base do Everest, conheceu os tibetanos pela primeira vez. Ficou com vontade de viver com eles mas já estava com pouco dinheiro e o visto também não dava para muito mais tempo. Voltou para a Tailândia e, passados cinco meses, já estava novamente no Nepal para fazer um curso de meditação com os tibetanos. Com o dinheiro novamente a acabar, resolveu ir para a Grécia vender artesanato, mas antes fez uma escala na índia para visitar Daramsala e tirar um curso de ioga.

Já na Grécia, vendeu artesana to nas ruas de Atenas, durante três semanas, e morou três meses na ilha de Paros. Depois, foi para a Alemanha vender artesanato e procurar emprego. Mas o traba­lho escasseava — o Muro de Berlim tinha acabado de ser der­rubado e havia excesso de mão--de-obra barata — e acabou por ir trabalhar para o Club Méd da Córsega. Voltou a Portugal pela primeira vez, ao fim de doze anos de viagens, mas não gostou. Os laços de família já não eram muito importantes e as suas refe­rências também tinham mudado. O chamamento do Ualai Lama era mais forte e foi morar para Daramsala, onde reside. Quanto à casa de Porto Seguro, não sabe o que lhe aconteceu. Talvez um dia volte lá.

H.M.

A Descoberta da India III - ATÉ AO OUTRO OCEANO


No relato anterior vimo-la terminando a travessia do Pacífico, depois de já ter resolvido mudar de nome, explorando a Austrália e a Nova Zelândia, entrando na China em busca das suas regiões mais recônditas. Finalmente chegamos à descoberta da índia pela índia: um horizonte incerto, um nome escolhido por diversas razões, revelam-se afinal proféticas designações do lugar onde viria a descobrir o desejo do seu coração.


Depoimento de Índia de Sousa recolhido por Maria Isabel Barreno.


Iniciada no nosso número de Junho, termina agora a viagem de índia, uma mulher que deu a volta ao mundo sozinha, gastando nessa aventura quase década e meia. Vimos como pouco a pouco a sua viagem se foi transformando numa experiência profunda, numa apren­dizagem sobre si própria e sobre o mundo: começou viajando perto, no norte de África e Europa; seguiu-se a volta à América do Sul, que lhe deu coragem e determinação para novos voos. Desistiu de projectos e seguiu o destino indicado pelas cir­cunstâncias. As cronologias apaga­ram-se, o tempo tornou-se questão meramente meteorológica. "Fui para a Tailândia de avião. Ainda tinha algum dinheiro do que juntara na Austrália. Banguecoque é uma cidade muito poluída e baru­lhenta. De Banguecoque segui para Surathani, e visitei as montanhas do norte à boleia. Gostei do rio Mekong. Visitei também o Triângulo de Ouro. onde se produz muito ópio e heroína. Era fácil arranjar boleia, mas estavam sem­pre a oferecer-me coca-colas. quan­do parávamos nas estações de servi­ço. Eu odeio coca-cola. mas aceita­va para não ser indelicada. Depois resolvi ir descansar para uma das ilhas no sudoeste, de que me tinham falado.

Há um barco, tipo cacilheiro. que faz a carreira. às vezes é perigoso, porque os barcos vão super carregados. com pessoas, com mercadorias, especialmente cocos. Enquanto eu lá estive, houve um barco que nau­fragou: ia muito carregado, apanhou uma daquelas tempestades que ali são frequentes. O pior, é que há muitos tubarões. Cheguei à ilha principal. Koh Samui, e não gostei. Era muito turístico para o meu gosto. Tinham-me falado duma outra ilha. a norte, Koh Phangan, mais bonita e com menos turismo. E nessa ilha tinham-me indicado uma praia, ao norte. Desembarquei, e fui para essa praia, de camioneta.

MEDITAR É DIFÍCIL


Era uma praia lindíssima, daquelas praias tropicais que só se vêem nos calendários, com uma água azul-turquesa, transparente, e com uma areia tão fina e tão branca como eu nunca vi. Na própria praia havia umas cabanas para alugar, naquele tempo seriam umas dez. Logo que vi as cabanas, escolhi uma; pensei "aquela é que eu queria". Estava muito velha, com o telhado torto. Vim a saber depois que foi a pri­meira cabana a ser construída na praia, por isso estava ali bem em frente ao mar. Assim decaída ninguém a quisera alugar, estava vaga, e eu fiquei com ela. Contentíssima. A renda era muito barata, cerca de 100$00 por dia. Era tudo baratíssi­mo. Durante todos os meses que lá vivi nunca fechei a porta da cabana: tinha sempre o mar bem ali à minha frente, noite e dia. Pus uma rede na varanda, dormia aí, enfeitei a varan­da com móbiles de conchas que apanhei. Não tinha medo dos tuba­rões, só havia mais longe. A praia fazia uma enseada, com uma água muito transparente, via-se o fundo, e os tubarões não vinham para ali. Um dia em que eu tinha ido nadar, quando voltei encontrei uma equipa a fazer fotografias mesmo em frente da minha casa. Eram dessas foto­grafias que se fazem para calendári­os, com umas beldades muito des­pidas, e em Ioda a praia eles tinham escolhido como fundo para as foto­grafias a minha varanda, com a rede. com as conchas penduradas. Fiquei ali oito ou nove meses. Havia, num dos extremos da praia, um americano que tinha alugado um terreno por dez anos. Cultivava esse terreno e ensinava tai-chi. Resolvi inscrever-me nos cursos dele. E perto havia também um mosteiro onde havia cursos de meditação, de dez dias. Fiz também vários desses cursos. Não eram cur­sos progressivos, com uni nível ou grau mais elevado a seguir ao outro. A pessoa ia repetindo para ir melhorando e aperfeiçoando a capacidade de meditar. Havia tam­bém meditação com tema. o que eles chamam meditação analítica: fixamo-nos numa frase, num mantra. e tentamos reflectir sobre isso. Mas insistia-se mais no outro tipo de meditação, o que consiste em esvaziar a mente, parar com a cor­rente associativa de ideias, fixando a atenção apenas na respiração. De qualquer maneira, esta meditação é a melhor para se começar, porque se aprende assim a controlar a mente, a não a deixar vaguear, e depois já se é então capaz de fazer a meditação com tema. Meditar é muito difícil, ao princípio, concen­tra-se a atenção na respiração durante uns minutos e depois a atenção distrai-se, ficamos durante meia hora, uma hora, ou mais tempo, a pensar nas coisas mais variadas, até darmos por isso, e depois volta-se a concentrar a aten­ção na respiração, até nova distrac­ção... Ao princípio, há muito pouco tempo de concentração, e muito de distracção. Pouco a pouco os tem­pos de distracção tornam-se mais curtos: vagueamos mentalmente durante vinte, dez minutos, damos por isso, voltamos à respiração... É lento e difícil. Mas só quando se consegue esse silêncio interior é que a mente se abre para outras coi­sas: só depois do esvaziamento é possível n aprendizagem de coisas novas, sobre nós mesmos e sobre o exterior, coisas que não estão ligadas ao que sabíamos até então.

A certa altura, resolvi ir à Indonésia. Isto foi ha' uns quatro ou cinco anos, as relações com Portugal já estavam tensas, embora não como agora. Não me lembrei desse problema. Fui a Penang. A cidade era perto, era só fazer a tra­vessia de barco, ia lá de três em três meses renovar o visto. Já depois de ter a passagem alguém me disse que os portugueses deviam precisar de visto para a Indonésia, por causa da questão de Timor. Fui ao consu­lado indonésio em Penang, era scxta-feira, disseram-me que não havia problema, que na segunda de manhã o visto estaria pronto. Perguntei se tinham a certeza, dis­seram-me que sim. Segunda feira de manhã cheguei a Penang. Tinha a viagem marcada e paga, para essa tarde, de Penang para Sumatra - é uma curta travessia de barco. Fui ao consulado, disseram-me que afinal o visto só podia ser passado pela embaixada, que era em Singapura. Tomei a camioneta para Singapura, foi uma viagem de doze horas, durante a noite, infernal. A^ Malásia é dos países mais ricos da Ásia, tem boas estradas, c os autocarros são daqueles modernos, com vídeo. De modo que a ideia deles de luxo, é essa: a noite inteira com o vídeo aos berros, e o ar condicionado ligado do tal modo que fazia um frio de rachar.

Cheguei a Singapura, fui à embai­xada indonésia c disseram-me que não davam vistos a portugueses. Era a questão de Timor, mas não sei se era só isso. Para o Sri Lanka também só os portugueses, e os singapurenses. precisam de visto. Parece-me que os portugueses estão malvistos por ali. Serão só questões diplomáticas? Talvez seja a nossa diplomacia que é pouco eficaz. Tive que voltar para trás. Acabei por conseguir que a agência me devolvesse o dinheiro da passagem, mas foi difícil. E voltei para a ilha. para a minha cabana. Entretanto aquela praia começava a ter mais gente, construíam mais cabanas, já se notava a diferença. E quando fui à índia e voltei, passados alguns meses, então a diferença era brutal. Havia mais umas duzentas cabanas. E a minha já fora demolida. Era assim: deitavam um coqueiro abai­xo, faziam uma cabana. De modo que havia menos duzentos coquei­ros e mais duzentas cabanas. Agora nem sei como estará.


NA ÍNDIA


Depois de algum tempo na ilha, resolvi ir à índia. A índia é um país complicado, é difícil lá estar. Uma civilização muito antiga, completamente decadente, e que agora tenta absorver os valores do Ocidente e tornar-se numa potência mundial. A pobreza é aflitiva. Cheguei a Calcutá na altura dum festival e havia milhões de pessoas. O mais difícil na índia é conseguir informa­ções correctas e sobreviver aos ata­ques dos que querem convencer-nos a deixar o nosso dinheiro nas mãos deles. Apesar de já ter viajado tanto, fiquei chocada com as multi­dões e a pobreza da índia. De Calcutá segui para Caxemira. Fui de comboio. Os comboios indianos são uma experiência única. São a carvão, ainda são do tempo da colo­nização inglesa. Andam devagar, c ao fim de umas horas de viagem a pessoa está coberta de pó preto. Os comboios vão cheios, apinhados. Num compartimento onde deveriam ir seis pessoas, vão oito ou dez. Há couchettes, e eu reservava couchettes quando as viagens eram compri­das, mas também aí nada é garanti­do: se eu me encolhia, a dormir, e ficasse durante algum tempo enro­lada na posição fetal, quando tenta­va voltar a esticar-me já tinha outra pessoa enfiada na minha couchette enrolada no espaço que eu deixara livre. E há um barulho horrível porque a índia é o país do barulho, há sempre rádios aos berros O calor é insuportável, e cheira mal. E o comboio pára em todas as estaçõ­es, durante muito tempo, há uma multidão de vendedores em cada estação, vendendo tudo o que se possa imaginar, as pessoas saem do comboio, é como ir a um mercado. Nunca vi país onde se vendesse tanta coisa, em todo o lado. como na índia. Ao norte predominam os muçulmanos, e são insuportáveis. Fui seguida e abordada na rua. o género de coisas que aqui no Ocidente só se fazia nos anos cin­quenta. No género de vir um atrás de mim, eu parar para o fazer pas­sar à minha frente e ele parar adian­te com truques tão primários como pôr-se a atar o sapato ou deixar cair o lenço. E os apalpões, no meio da confusão. No sul também há este género de coisas, mas no norte, com os muçulmanos, é pior. Sentava-me num sítio, vinha logo um a querer meter conversa. No comboio era a mesma coisa, tenta­vam sempre meter conversa. Nem sempre é com segundas intenções, eles têm uma grande curiosidade em relação ao Ocidente, querem comunicar. Mas sabem pouco inglês, aprendem meia dúzia de fra­ses na escola. Como é que se chama? Qual é o seu país? Que idade tem? Não se passa disto. De modo que a conversa é sempre a mesma, e pouco interessante.
De Caxemira segui para Delhi, Rajasthan, Gujarat (Diu), Bombaim, Goa, Kerala, Tamil Nadu, Madrasta, Benares, e por fim o Nepal.Fiquei sempre em hotéis, ou então em ashrams. que são santuários onde se pode ficar. Têm quartos, e a comida é muito barata. Participa-se no trabalho colectivo. As pessoas são hospitaleiras, e vári­as vezes me convidaram para casa delas, mas só aceitei alguns convi­tes para jantar. São as mulheres que convidam sempre, mesmo quando eu fazia amizade com uma família, no comboio, por exemplo, era a mulher que convidava. A casa é o território delas. Para dormir não. é impossível dormir numa casa india­na. Dormem de luz acesa e com o rádio aos berros. E não fazem como nós, que nos deitamos para dormir de seguida até de manhã. Dormem aos bocados. Dormem, depois levantam-se e vão fazer um chá. e ficam a conversar um bocado, depois voltam a adormecer, passam a noite assim. Não sei como conse­guem descansar, estão habituados. Uma vez estive numa casa, à noite, havia várias pessoas a conversar, o rádio aos berros, e um tranquila­mente deitado a dormir - ressonava, até - tudo na mesma sala. Habituam-se assim desde pequenos. Nunca mais me esqueço da cena que vi numa rua de Benares. Uma pedinte, leprosa, sentada no pas­seio. A frente dela, numa esteira, estava um bebé. Bem junto ao ouvi­do do bebé estava um rádio aos ber­ros, e o bebé dormia profundamen­te. Esta cena resume bem a índia.


APRENDIZAGEM DE PACIÊNCIA


Na índia só andei de comboio c camioneta, andar à boleia pareceu-me arriscado. Andar de camioneta é também uma experiência pesada, na índia. E um treino de paciência. As camionetas são velhas, a cair aos pedaços, as estradas são más. cheias de buracos. As camionetas não cumprem os horários, chegam sem­pre atrasadas, ate porque as proba­bilidades de terem um percalço, uma avaria, são enormes. Se a pes­soa apanha uma camioneta para ir até um lugar onde tem que apanhar outro transporte, é uma guerra de nervos. Aos poucos fui aprendendo. Hoje em dia. quando estou na índia e tenho de ir para qualquer sítio com data marcada, vou com três dias de antecedência. É a margem necessária para todos os imprevis­tos possíveis, e assim posso viajar tranquilamente, caso contrário dava em doida. Outro problema é o das informações falsas, como já disse. Por exemplo, eu chegava de camio­neta a uma terra, para apanhar outra camioneta c seguir viagem. Perguntava se havia camioneta para o sítio para onde eu queria ir. c a que horas passava. Diziam-me que sim. e a camioneta não aparecia. Todas as explicações eram possí­veis: a camioneta estava atrasada e iria aparecer horas depois: ou tinha avariado e só viria no dia seguinte: ou não havia camioneta c tinham-me dado uma informação falsa. Os indianos mentem constantemente: porque lhes convém, ou às vezes nem isso. dizem o que lhes passa pela cabeça. E mentem, e a gente diz-lhes "está a mentir", e eles con­cordam que estavam a mentir e inventam outra mentira. Eu sou uma pessoa que gosto de improvi­sar, gosto de seguir viagem ao sabor das circunstâncias, nunca me interessei em ter informações e guias turísticos. Mas. na índia, isto é uma coisa que eu digo a toda a gente, é impossível viajar sem ter um bom guia. com informação sobre transportes, preços, horários, hotéis, tudo. Quer dizer, impossível não é. mas é de dar em doido, e é-se explorado. E há esse tal problema de não se conseguir estar sozinha na índia. Eu gosto da solidão, preci­so pelo menos de algum tempo para estar só. Para começar, eles são muitos, são milhões, está sempre tudo apinhado de gente. Depois, os indianos não concebem que uma pessoa goste de estar sozinha, muito particularmente os homens indianos não concebem que uma mulher goste de estar sozinha. Fosse onde fosse, aparecia um com as perguntas da praxe, a meia dúzia de frases que sabem dizer em inglês. Uma pessoa manda-os embora, e eles não vão. Eu não sou agressiva, nem violenta, mas na índia comecei a resolver estas coi­sas com um estalo. É a única maneira, só assim é que entendem. Ao princípio, era bem educada, dizia delicadamente "eu quero estar sozinha". Eles não acreditavam, achavam que era uma manobra de coqueteria. Eu irritava-me, insistia que queria estar sozinha, mandava-os embora. Eles continuavam a não acreditar, continuavam a achar que eu estava a dizer aquilo só para me fazer interessante. Só ao estalo. Assim entendem. Apanham o esta­lo, aí desistem, vão-se embora, não são violentos. De modo que para se estar sozinha c tranquila só se uma pessoa se esconder no meio do mato. Nunca pensei que viria a viver na índia. Bom. não vivo bem na índia, vivo na comunidade tibe-tana. exilada na índia, mas mesmo assim... Talvez a índia fosse a aprendizagem de paciência que eu necessitava, o meu destino, o meu karma.


EM DIU E GOA


O Rajasthan tem uma paisagem muito bonita e as pessoas da área. descendentes de ciganos, vestem-se com cores muito garridas. Fiz um passeio de camelo, de quatro dias, no deserto. O dono ia sentado atrás de m i m e deixava-me conduzir.

Levávamos provisões e um fogarei­ro de querosene, e à noite acampá­vamos, com o camelo por perto, com as duas patas da frente amarradas para não fugir.

Segui então para Gujarat. o Estado onde nasceu o Ghandi e onde fica Diu. Gostei muito de Diu. Tem um ar português, encontram-se lá mui­tas pessoas que ainda falam portu­guês. Comerciantes, por exemplo, gente nas lojas. Gostei mais de Diu do que de Goa. O acesso é muito difícil e a água não é azul porque fica no estuário de um rio, mas a paisagem é maravilhosa. Como vêm poucos turistas ficam conten­tes por receber estrangeiros, especi­almente quando falamos português. Diu é uma ilha pequena e fiz a volta de bicicleta, num dia. Aluguei uma casinha na praia. O dono era de Moçambique. Quando voltava da pesca passava sempre para dar dois dedos de conversa e vendia-me cada lagosta por cinco escudos! As crianças vendiam lenha, que trazi­am em feixes, à cabeça. A noite havia muitos coiotes, que às vezes se aventuravam perto, por isso eu mantinha sempre a fogueira acesa até ir dormir. Uivavam toda a noite c cheguei a ver um. de dia. ao longe, nas dunas.

Dali segui para Bombaim, cidade demasiado grande. Parti no primei­ro barco para Goa. A viagem dura uma noite inteira, com centenas de turistas e indianos a dormirem no chão onde conseguem encontrar espaço. Nessa época usava uma corrente de prata num tornozelo e no meio da noite acordei com uma mão. muito levezinha, a tentar abrir o fecho devagarinho. Esperei uns minutos para ter a certeza de que não estava a sonhar e dei um fortepontapé. Acertei em cheio, mas não houve reclamações... O barco chegou a Pangim. a capital, e tomei vários autocarros para chegar a Arambol. a praia mais a norte. Goa é lindíssima, como paisagem. ião admira que os portugueses tivessem escolhido fixar-se aí. quando chegaram à índia. As praias tão maravilhosas, tropicais. Lembram muito as praias do Brasil. \lias. Goa lembra o Brasil, nas .asas. no ambiente, é a mesma atmosfera colonial. Em Arambol aluguei uma cabana. A praia era muito bonita. Sai-se do mar, anda-se uns duzentos metros e mergulha-se numa lagoa de água doce. Algumas pessoas tinham amarrado uns panos nas árvores, para se proteger. e viviam ali. Um paraíso. Um dia por semana há mercado em Anjuna, que é outra praia. Havia então uma fauna incomparável de hippies, punks e celebridades. Vendia-se de tudo, desde compotas caseiras a heroína. Eu aproveitei para vender alguma roupa que nunca usava e ficar com menos peso na mochila.

Dali segui para Kerala. onde fiz uma parte da viagem de barco -cerca de duzentos quilómetros -pêlos braços de rios e canais que serpenteiam por essa área. Cheguei a outra praia famosa, cha­mada Trivandum, mas havia demasiados turistas indianos embasbacados a olhar para os turistas estrangeiros. Só fiquei alguns dias. apesar de ter encon­trado um quarto em casa duma família local, simpatiquíssima.



BENARES



Fui então para Madutai. onde há o templo mais famoso e imponente do sul. e para Tamil Nailu. Visitei Pondicherry, uma antiga colónia francesa, e de lá continuei para Madrasta, que é uma cidade supor­tável. No sul. os indianos são maisbonitos, tem mais dignidade c mais respeito pêlos estrangeiros. Apreciei não ser agredida o tempo lodo; até os condutores dos rickshaw aceitavam um não e iam-se embora, em vez de insistirem. Gostei também muito da comida do sul, que é servida em folhas de bananeira e deliciosa. São vegetari­anos, o que foi mais fácil para mini - desde o Brasil que eu linha vindo a tentar tomar-me vegetariana. Sem fanatismos, claro. Se eu for a pen­sar em todas as coisas que comi durante esta viagem! Na China, experimentei carne de cão. Dizem que quase não tem sabor, por isso eles temperam-na muito. Achei saboroso, talvez fosse do tempero. Em Macau, experimentei carne de cobra. E deliciosa. Uma coisa hor­rorosa que nas Filipinas acham um petisco é o balud. Comem ao pequeno-almoço. Experimentei também, é horrível. É o ovo quando o pinto começou a formar-se lá dentro. Come-se assim: parte-se um bocado da casca, por cima, e depois chupa-se para dentro da boca tudo o que está dentro do ovo. Cru. É hor­rível. Eu dei uma mastigadela. senti aquelas cartilagens todas, engoli, aquilo chegou aqui à entrada do estômago, voltou para cima. vomi­tei. Na Tailândia experimentei um petisco que se vende às esquinas, como aqui se vendem castanhas assadas: gafanhotos assados na brasa. Não tem sabor.

O meu visto estava a acabar -naquela época só davam por seis meses. Apanhei o comboio directo para Benares. E uma cidade mági­ca, não é por acaso que é cidade sagrada. Os hindus acreditam que quem morrer em Benares e aí for cremado, e as suas cinzas atiradas ao rio Ganges. sairá do ciclo das reincarnações. Ou então terá uma reincarnação muito melhor na pró­xima vida. Por isso Benares está cheia de gente à espera de morrer. Vêm de todos os lados da índia, aos milhares, velhos, doentes, e ficam por ali à espera de morrer. Os mais ricos ficam bem alojados, vêm com a família, os outros ficam na rua. onde calha, nas margens do rio. Há cortejos fúnebres a toda a hora. Não são nada tristes, são bonitos, colori­dos. Os hindus não vêem a morte como uma coisa triste, c uma liber­tação desta vida. Uma passagem para outra vida. De modo que os cortejos têm muitas cores, e eles cantam e dançam, é mais parecido com um carnaval do que com um enterro. Há também os cortejos mais ricos, e os cortejos pobres. Chegam à margem do rio e quei­mam o cadáver. Também conforme o dinheiro da família, assim o tama­nho do monte de lenha que eles conseguem comprar para a incine­ração. As famílias muito pobres compram pouca lenha, e muitas vezes não é suficiente para queimar totalmente o cadáver. De modo que ficam uns bocados, uns restos, que eles atiram ao rio. E há matilhas de cães esfaimados nas margens do rio que se atiram à água para comer esses restos. Juntaram-se ali por causa dessa carne dos cadáveres. Trazem os bocados para terra, bri­gam uns com os outros. E há um cheiro muito especial em Benares. Um cheiro que nunca encontrei noutro lugar, e que reconheceria em qualquer lado: o cheiro da carne humana queimada.

Estava a acabar o tempo do meu visto. Tinha que sair. e deixar pas­sar um tempo até eles me darem outro visto. De modo que de Benares apanhei a camioneta para Kathmandu. no Nepal.


NO HIMALA

De Kathmandu segui a pé para o Everest. Foi uma viagem de 600 quilómetros. Subi até 6.000 metros de altitude. Equipei-me o melhor que podia, e fui seguindo a trilha da montanha. Sim. fui sozinha. De qualquer forma, quase nunca se está sozinha. O Nepal é quase como a índia, há gente por todo o lado. As trilhas estão marcadas e há alber­gues. Nuns sítios só albergues, de vez em quando aldeias, onde se pode ficar. Em todos esses sítios, até lá acima, se pode comer e com­prar bebidas. No Nepal, o transpor­te é todo feito a pé. Por isso. além dos turistas, que já são muitos, há sempre nepaleses para baixo e para cima. a abastecer esses albergues e aldeias. Muitos dos turistas e alpi­nistas, que vão bem equipados, não querem ter o trabalho de carregar a bagagem - e custa, fazer esforços naquela altitude - de modo que con­tratam carregadores. Durante lodo o percurso cruzei-me com filas de pessoas, com grupos grandes. O caminho é difícil de fazer porque a cordilheira do Himalaia está implantada na direcção norte/sul, e como o percurso se faz na direcção leste/oesle está-se constantemente a subir e a descer. De manhã vê-se lá adiante, em linha recta, o ponto onde se vai chegar à tarde. Só que entre o ponto onde se está e aquele onde se vai chegar há uma encosta enorme, íngreme, para descer, um vale, lá em baixo, e outra encosta para subir. É sempre a subir e a des­cer. Eu levava umas botas ténis que não estavam bem justas ao pé. Logo no primeiro dia, na caminhada da descida, os meus pés escorregavam para a frente, dentro das botas, e os dedos foram batendo todo o tempo na ponta das botas. Quando tirei os sapatos à noite tinha os dedos gran­des dos pés negros e infectados debaixo das unhas. Fiz a caminhada toda com dores nos pés, linha que andar devagar. O pior era de manhã, quando me levantava.
Custava-me muito meter os pés dentro das botas, e o começo da caminhada era difícil. Depois os pés aqueciam, a dor atenuava. Como não tinha nada com que me tratar, resolvi improvisar um trata­mento. Nos albergues serviam aguardente, que as pessoas toma­vam para se aquecerem. Eu chega­va à noite, ao albergue, pedia um copo de aguardente aquecida, leva­va para o quarto e metia os dedos dentro da aguardente. Foi um boca­do assustador porque ao princípio quando carregava nas unhas saía muito pus. Mas aos poucos fui melhorando. E quando cheguei a Namche Bazaar, uma aldeia que fica a 5.000 metros, onde havia um posto de enfermagem, fiz um penso e tomei antibióticos. Mas a infecção foi tão grande que as unhas acaba­ram por cair. E nesta aldeia que ficam uns dias as pessoas que vão subir o Everest. para se habituarem à altitude. Para mim, como tinha vindo a pé muito devagar, não foi difícil a habituação, mas tudo era muito cansativo. Ia à casa de banho, que era lá fora. e já tinha que me sentar para recuperar a respiração. Mas havia muita gente interessante e as horas passavam-se depressa, na conversa, sentados ao sol nalguma esplanada.


EM PÂNICO


Entretanto fiquei sabendo que recentemente tinham desaparecido duas mulheres. Não iam as duas juntas, viajavam sozinhas, como eu. Uma australiana e uma canadia­na. Vi as fotografias delas num dos albergues, com a oferta de alvíssa­ras a quem as encontrasse. Eu_tinha encontrado a canadiana na índia, tinha jantado com ela. Aquilo assustou-me um bocado, olhava com atenção as pessoas com quem me cruzava nas trilhas, quando eram grupos achava que não havia grande perigo, de qualquer maneira passava sempre pelo lado de den­tro. As trilhas são estreitas, se se está do lado de fora basta um encontrão para se cair num precipí­cio.

Depois de Namche Bazaar tinha duas hipóteses: ou continuava a subir na direcção do Everest. ou seguia, quase a direito, na direcção dum lago. Tinham-me falado no lago. chama-se Gokyo. e tinham-me dito que a vista do Everest daí. mais à distância, era mais bonita. Como não eslava interessada em recordes de altitude, interessou-me mais a viagem até ao lago. É real­mente um lago lindíssimo, com uma parte gelada e a outra com água dum azul-turquesa deslum­brante. E foi à vinda que apanhei o grande susto da minha vida. Foi a única vez em que fiquei realmente assustada, quase em pânico. De repente, olho para trás e vejo uma pessoa, um homem, a andar na minha direcção. Pensei logo no possível assassino das duas mulhe­res desaparecidas. Comecei a andar cada vez mais depressa, o mais depressa que podia, na esperança de chegar ao albergue antes que ele me alcançasse. Mas ele andava muito depressa, e começou a apro­ximar-se. Numa curva do caminho resolvi esconder-me atrás duns rochedos e deixar que ele me ultra­passasse. Ele passou, muito depres­sa, a olhar em frente, nada preocu­pado em me procurar. Era um japo­nês, e percebi depois, quando che­guei ao albergue, que ele tinha fica­do para trás e tinha vindo, na trilha, a tentar apanhar o seu grupo. O meu "assassino" era afinal um pacato membro duma excursão de turistas japoneses. Regressei a Kathmandu e soube que havia um curso de meditação em inglês, num mosteiro tibetano. Fiquei curiosa e resolvi inscrever-me. Era um curso mais avançado, sobre psicologia tibetana. Eu não sabia, quando che­guei fiquei admirada de ver menos pessoas que o costume - umas oito - com cadernos e lápis. Mas quan­do o Lama começou a falar, senti que finalmente tinha encontrado alguém que "sabia". Foi como se apenas estivesse a recordar coisas esquecidas, como se tivesse volta­do para casa. O visto acabava, mas eu sabia que tinha de voltar para aprender mais com os tibetanos e a sua filosofia de vida. Voltei para a Tailândia, para Koh Phagan, para descansar.

Quando voltei à ilha a minha caba­na tinha sido demolida. Já tinha começado o desenvolvimento turís­tico, a praia já estava bastante dife­rente. Fui viver para o mosteiro. Vivi aí quatro meses. Foi um tempo óptimo. Continuei a fazer meditação, ajudava no trabalho do mosteiro. E o mosteiro tinha uma biblioteca óptima, com muitos livros em inglês, comecei a interes­sar-me cada vez mais pela filosofia budista. O dinheiro que eu tinha junto na Austrália estava a acabar. Tinha o dinheiro à justa para com­prar uma passagem de regresso à Europa, e tinha que tomar uma decisão. Ali. na Tailândia, não havia possibilidades de emprego, nem tinha hipóteses de continuar a viagem a bordo de veleiros. Por isso, ou me vinha embora, ou continuava a gastar o dinheiro que res­tava e arriscava-me a ficar sem meios para sair dali. Mas eu tinha saído da índia com a ideia de vol­tar, sabia que faziam cursos para estrangeiros que duravam um mês no mosteiro da comunidade tibeta­na, em Kathmandu, e cada vez mais sentia vontade de ir fazer esse curso. Resolvi então escrever para um amigo meu. o americano que viajara comigo no veleiro de Fidji à Austrália. Tínhamos ficado amigos, ele tinha-me dito que, se precisas­se, lhe escrevesse. Escrevi, e fiquei à espera de resposta. E um dia, fui a um restaurante e encontrei-o. Ele estava, ali mesmo, na ilha. Não tinha recebido a minha carta, já tinha saído dos Estados Unidos quando eu lhe escrevi, tinha resol­vido vir visitar-me. Emprestou-me o dinheiro, comprei uma passagem para Calcutá, que era a mais barata. A minha ideia era aproveitar e via­jar pelo Nepal, voltar a Kathmandu e ir então para o mos­teiro tibetano.

OUTRO OCEANO


Fiz o curso de um mês, e gostei muito. A seguir, fiz um curso mais longo. Queria ficar, mas estava outra vez com o dinheiro no fim. A partir daí as coisas foram aconte­cendo. Em Kathmandu, quando já estava disposta a vir-me embora, encontrei uma amiga colombiana -que conhecera quando estive na Colômbia. Ela emprestou-me dinheiro, disse-me que lhe pagasse quando pudesse. Um dia, estava sentada numa esplanada em Kathmandu com uns amigos que também tinham feito o curso no mosteiro. Eles estavam a preparar-se para virem embora. Um deles foi trocar dinheiro e, quando voltou, contou o dinheiro e disse: "Enganaram-se, deram-me cem dólares a mais". Eu disse-lhe que. se não precisava daqueles cem dólares, que mós emprestasse. Ele respondeu que me dava o dinheiro e que um dia, quando eu pudesse e encontrasse alguém que precisasse de dinheiro, que desse cem dólares a essa pessoa.

Com o dinheiro emprestado pela minha amiga colombiana e esses cem dólares consegui ficar mais quatro meses. Fiz um curso de ioga na índia, comprei coisas de artesa­nato indiano e nepalês para trazer e vender na Europa, e comprei a pas­sagem de volta. Para Atenas, por­que era a passagem mais barata. Saí dali com a ideia que encontrara o meu caminho. Voltava à Europa para arranjar dinheiro para regressar à comunidade tibetana e conti­nuar ali os meus estudos. Comecei uma viagem à volta do mundo, aca­bei fazendo uma viagem no mundo interior.

Saí do avião em Atenas sem um tostão. Fui directamente para a rua, perto do Parthénon, vender as coi­sas que tinha trazido. A Grécia é o único país da Europa onde não é. ou pelo menos não era, preciso licença para vender na rua. Tive sorte, era Agosto e havia muitos turistas. Vendi tudo. Juntei dinhei­ro, fui para a Alemanha. Fiquei na casa dum amigo, esperava encon­trar emprego facilmente, mas as coisas estavam difíceis na Alemanha. Acabei por encontrar emprego, através dum jornal ale­mão, para ir trabalhar na Córsega, para um clube de férias. Fiquei aí quatro meses, até ao fim da época. Com o dinheiro que juntei regressei finalmente a Portugal. Passado um mês voltei a Mcleod Granj, Dharamsala. É onde moro agora. Estudo filosofia e língua tibetana, no mosteiro e no centro internacional para estudos tibeta­nos, que faz parte duma universida­de indiana. Somos cerca de trinta estrangeiros a fazer estes estudos em tempo completo, mas muita gente vem assistir, às vezes por um mês. Eu sou a única portuguesa, o resto são sobretudo americanos, suíços, franceses.

É uma pequena vila a 2000 metros de altitude, há uma população indi­ana, mas a maioria são os refugia­dos tibetanos, pois é ali que vive o chefe político e espiritual deles - o Dalai Lama. O ambiente é total­mente tibetano. As ruas estão chei­as de monges vestidos com o traje vermelho escuro e ao fim da tarde vamos todos passear à volta da casa do Dalai Lama. um ritual divertido. Depois de ele ter recebi­do o Prémio Nobel, cada vez mais gente o vem visitar. Por isso, nesta aldeia perdida no Himalaia, tenho a oportunidade de encontrar cientis­tas, políticos, artistas de cinema, de todo o mundo.

Ás vezes tenho vontade de ir ver outros lugares, tenho saudades dos coqueiros e do oceano, mas depois penso que vivo ao lado de outro oce­ano, o do saber - Dalai Lama quer dizer "oceano de discernimento".•








A Descoberta da India II - TEMPESTADES NO PACIFICO


Na postagem anterior se contava como índia, a mulher viajante, pouco a pouco se descobrira, à medida de suas viagens. Depois do Mediterrâneo, visitou a América do Sul, dai partiu para uma volta ao mundo. Deixámo-la no Tahiti, esperando novo passaporte, e decidindo mudar de nome, tão modificada se sentia depois do longo percurso. Aí a reencontramos, pronta a prosseguir a travessia de um oceano, Pacífico de seu nome mas com frequentes tempestades.


Relato de índia de Sousa, recolhido por Maria Isabel Barreno.


O passaporte chegou em Outubro, quando os ventos mudam e há perigo de ciclone naquela área.

Já não havia veleiros. Fui ao porto de navios de carga e tive sorte. No primeiro barco disseram que não, no segundo disseram-me que podia ir na enfermaria, que era enorme e raramente utilizavam. Pediram-me 25 dólares por dia, com refeições. Comia na messe dos oficiais.

Foi o primeiro con­tacto que tive com os filipinos: são pessoas impecáveis. Visitei o barco, aprendi a fazer navegação com o sextante.

Fui até Samoa, onde demorámos uns cinco dias. Chegámos a Samoa Ocidental, que é completamente americana. Depois atravessei num barquinho para Samoa Oriental, que é inde­pendente. Um lugar maravilhoso onde pouca gente vai, completa­mente preservado nessa época. Cheguei e logo no barco encontrei um que me convidou para casa dele. Depois resolvi fazer uma viagem pela ilha, de autocarro.

O clima é tropical, as casas são palhotas com as paredes feitas de folhas de coqueiro entrançadas, e têm um sistema como o das persi­anas. Durante o dia levantam as paredes das casas e à noite des­cem.

É um país pobre, mas há muita comida, é uma luxúria. Os mais velhos engordam imenso. Quando se passa, vêem-se mulheres velhas deitadas nas casas, com as paredes levantadas, a abanarem-se com os leques e a verem as pessoas passar. As pessoas convivem muito, vivem praticamente na rua e quando eu passava chamavam-me logo. Produzem imenso cacau, davam-me sempre chocolate quente, têm imen­so coco e peixe e cozinham maravi­lhosamente.

São muito católicos, ao domingo vestem as roupas melho­res e antes de irem para a igreja dei­xam a comida a cozinhar. Fazem um buraco no chão, põem pedras aquecidas no fogo e muitas folhas secas, e depois põem a comida, mais folhas, e cobrem com pedras quentes. Vão para a missa, quando voltam está tudo cozinhado e a comida fica deliciosa.

As regras da hospitalidade, ao princípio, faziam-me imensa confusão. Serviam-me numa folha de bananeira, as crianças mais pequeninas abanavam-me com leques enquanto eu comia, e ficavam todos a olhar para mim. Só comiam depois de eu ter acabado. Tinha imensa ver­gonha, sentia-me mal. Depois habituei-me. Ainda por cima ficam contentíssimos: quando eu comia na casa dum, no outro dia esse andava com um ar todo importante.

Uma vez ofereceram-me morcego. Eles comem uma das espécies de morcego que lá há, que só se alimenta de frutas. O morcego vinha inteiro, o foci­nho parecia uma carinha mirrada, não consegui comer...

Entretanto soube que havia um cargueiro que ia para Tonga. Tinha tido uma boa experiência com cargueiros, pensei que seria igual. Mas não foi, há muito trân­sito de passageiros entre Tonga e Samoa. Dormíamos todos no chão, onde encontrávamos lugar. A comida era péssima. Mas aque­las pessoas quando viajam levam instrumentos de música, canta­vam, dançavam, era uma festa.

A viagem durou três dias. Cheguei a Tonga, um lugar também muito bonito. Mas como vinha de Samoa, não me espantou tanto. Em Tonga há um rei. É uma família real de muitas gerações, e são todos enormes, medem dois metros, pesam uns duzentos ou tre­zentos quilos, o rei actual nem sei quanto pesa. São os únicos grandes, daquela zona, os povos do Pacífico são todos pequenos, mesmo em Tonga.

No Yacht Club perguntei se havia barcos. Havia um, de um casal de americanos que iam para Fidji. Combinei ir com eles, mas estava com um bocado de medo porque eram incompetentes. Tinham come­çado a fazer charters, traziam pes­soas dos Estados Unidos até Fidji, mas não tinham experiência e o barco não estava equipado para o mar. Era um barco de madeira, anti­go, muito bonito, uma relíquia. Desde que saímos até ao momento que chegámos a Fidji, o americano esteve enjoado o tempo todo. Praticamente fui eu que conduzi o barco.


De Fidji eu queria seguir para a Nova Zelândia, mas havia poucos veleiros. Com as viagens nos car­gueiros eu tinha recuperado algum do atraso que trazia desde o Tahiti, mas a maior parte dos barcos tam­bém já tinha saído daquela zona.

Descobri um único barco à procura de tripulação - ia para Brisbane. Eu só sabia que era na Austrália: naquela época tinha uma ideia vaga da Austrália. Fui falar com o comandante, um inglês muito com­petente, especialista no Capitão Cook, que já tinha sido conselheiro técnico de filmes históricos.

A tri­pulação tinha sido toda contratada ali, como eu: um polaco, um ameri­cano e um espanhol. Perguntámos se era preciso comprar comida e o capitão disse que não. Explicou-nos que o barco estava equipado como ele gostava, não tinha motor, mas tinha tudo o que era preciso.

Começámos a viagem e fomos então descobrindo que a navegação tinha que ser como no séc. XVIII. As velas tinham de ser descidas e içadas à mão. Nós os quatro fazía­mos as manobras e conduzíamos o barco. Havia uma vela triangular no cimo do mastro, não sei como se chama em português. Cada vez que se tinha de pôr ou tirar essa vela, um dos rapazes tinha de subir o mastro, estilo macaco.

O capitão cozinhava e fazia a nave­gação. A comida era sempre a mesma: ao pequeno-almoço, uma sopa com bolachas do tempo do Capitão Cook - se uma pessoa não as molhasse na sopa partia os dentes; à hora do almoço era sempre a mesma coisa, arroz e caril de car­neiro, daquele enlatado, horrível; à hora de jantar, unia sopa de pacote, outra vez com bolachas. Comemos isso todos os dias.

Ficávamos dois de cada vez a fazer quartos de qua­tro horas. Só havia dois abrigos contra a chuva e o frio, por isso os que tinham acabado o quarto tinham que despir os abrigos e dá-los aos que entravam. A meio da noite e às escuras, porque nem se podia acender a única lampadazinha de querosene que havia.

Às vezes havia tempestades, nem nos conseguíamos ver: era um despe casaco, veste casaco, na escuridão total. Mas o capitão dizia-nos: o bom marinheiro sabe sempre onde está tudo.

Era um barco de 12 metros, pesado, mas só tinha pau de leme, não tinha roda, as manobras custavam a fazer. Mesmo os rapa­zes, que eram fortes, no segundo dia de viagem estavam cheios de dores nos braços. Resolvi passar uma corda à volta do pau, ficava mais fácil porque desmultiplicava a força que eu tinha de fazer. Quando o capitão me apanhou a fazer isso, ficou furioso. Mas o pior foi quan­do nós descobrimos que a comida durou exactamente os quinze dias da viagem. Numa viagem daquelas, num barco sem motor! Tivemos um tempo óptimo, quer dizer, houve chuva e trovoadas, mas o vento foi perfeito, nunca mudou. Se tivésse­mos tido algum contratempo, era o fim.


UMA CHEGADA MEMORÁVEL


A nossa chegada à Austrália foi memorável, uma cena cómica que merecia ter sido filmada. Chega-se a Brisbane por um rio. Entrámos no rio e tínhamos a corrente em senti­do contrário e o vento também de frente. Portanto começámos a virar, mas de cada vez que íamos até uma margem encalhávamos no lodo; conseguíamos desencalhar, viráva­mos para o outro lado, encalháva­mos na outra margem.

Avançámos talvez um quilómetro em cinco horas. Finalmente a maré mudou, pelo menos a corrente já era favo­rável, e fomos avançando até um lugar onde havia vários barcos atra­cados. Tínhamos que declarar a nossa chegada;

O capitão saiu do barco. Quando voltou, disse-nos que ainda não era ali que podíamos atracar, que teríamos de subir o rio até ao ancoradouro em frente do Jardim Botânico e que tinha combi­nado com a Alfândega e a Polícia Marítima que estaríamos lá às cinco horas. Eram duas da tarde. Bom, desatracámos e continuámos a querer subir, só que o rio fazia muitas curvas, e começava a ter edifícios nas margens, que cobriam o vento, íamos muito bem um bocadinho, e de repente não havia mais vento; lá íamos outra vez, vol­távamos a parar. Isto era num fim-de-semana, passou um barquinho daqueles de plástico, mesmo pequenino, com um casal que tinha ido à pesca. Estávamos tão deses­perados que começámos a acenar para o barco e conseguimos con­vencê-los a rebocar-nos. O plástico do barquinho rangia e estalava, o dono achou que ia ficar sem barco e desistiu, mas avançámos uns metros, já deu para sair detrás daquele edifício, apanhámos outro ventinho, lá fomos mais um boca­do.

Devagarinho, chegámos a um lugar muito bonito, com um jardim enorme de ambos os lados, cheio de gente a passear. De repente, no meio do relvado, a uma velocidade incrível, com sereias e luzes, apare­ce a polícia. Já eram seis da tarde, e a polícia pensava que andávamos a fugir. Começaram a gritar nos alti­falantes: «Por favor, dirijam-se ao Jardim Botânico o mais depressa possível.» E o capitão, do lado de cá, tentava responder-lhes: "Eu sei, mas não há vento". Bom, lá conse­guimos dar mais uma curva, e de repente vimos o Jardim Botânico. Mas nessa altura o barco começou a ir para a margem. O polaco e o americano, que eram engraçadíssimos, resolvem saltar para terra com uma corda e começam os dois a andar pelo passeio fora a puxar o barco. E nós com as velas todas em cima a tentar apanhar o mínimo vento - foi um espectáculo. Juntou-se uma multidão.


Quando chegámos ao Jardim Botânico estava lá a polícia à nossa espera. Revistaram tudo. não encontraram nada, as coisas resolveram-se. Apanhei boleia do carro da polícia e fui para o centro da cidade.

O dinheiro que tinha junta­do dava-me para uma semana ou dez dias. Comprei um jornal, vi um anúncio de um apartamento, alu­guei. Logo a seguir arranjei um emprego: distribuir panfletos nas caixas do correio.

Brisbane é uma cidade agradável, mas não gostei do emprego; resolvi mudar para Surfers Paradíse, um lugar que fica 50 quilómetros ao sul. Cheguei de manhã e passado uma hora tinha emprego, passado três horas tinha um apartamento ao pé do mar. Era óptimo e trabalhava à tarde.

Depois comecei à procura de um emprego em que trabalhasse mais horas e ganhasse melhor. Fui aos restau­rantes e num deles precisavam duma empregada de mesa. Veio a responsável, perguntou-me se tinha experiência, eu disse que sim, e ela perguntou-me: "Quantos pratos é que você consegue levar?" Nunca na vida eu tinha servido à mesa. pelo que fiquei um bocado aflita. Tentei lembrar-me de quantos pra­tos costumam levar os empregados nos restaurantes, e disse "quatro". "Mostre-me como é que faz". disse, e deu-me quatro pratos para eu mostrar. Tenho boa memória visual, pus um prato aqui, outro ali. sobravam-me dois e não sabia ainda bem como é que ia fazer, quando ela disse: "Pronto já vi que sabe. amanhã começa a trabalhar".


"FUI VIAJAR"


Passados três meses fui viajar. Na Austrália, naquela época, o dinhei­ro que ganhava numa semana dava para comprar um carro em segunda mão. Mas da Austrália dos ociden­tais não gostei. E só no interior é que vi aborígenes. Eram um povo nómada, movimentavam-se muito, mas dentro do seu território tinham lugares sagrados. Os brancos tira­ram-lhe essas terras e deram-lhes reservas noutros lugares, só que para os aborígenes esses novos lugares não valem nada. Estão desenraizados, estão a ser destruí­dos por isso, bebem, bebem muitís­simo. Fizeram também uns bairros económicos para eles, e dão-lhes uma espécie de pensão, mas nada disto tem sentido para os aboríge­nes.


A Austrália é um país muito racis­ta. Só no fim, quando estive no norte, num lugar onde havia um albergue da juventude, conheci um branco que tinha contacto com os aborígenes. Era filho de ingleses, dono duma mercearia, tinha nasci­do ali há uns quarenta e tal anos,quando só havia aborígenes. Ele cresceu e foi à escola com os aborí­genes. Num passeio pela floresta. mostrou-me os frutos silvestres e os insectos com que eles se alimentavam: como faziam cabanas com certas cascas de árvores, e até como as mulheres deixavam uma certa espécie de formigas verdes na água várias dias e depois bebiam essa água como contraceptivo. Esse branco tinha tentado encontrar os seus antigos colegas de escola e descobriu que nenhum deles estava vivo.


Era uma zona muito remota, para onde só iam viver brancos que que­riam outro estilo de vida. Três anos antes de eu lá ter ido. o governo tinha feito uma estrada, e foi um desastre. Naquele tipo de floresta há quatro camadas de folhagem, que vão amortecendo as gotas, e no solo ainda há uma camada grossa de folhas mortas: é um sistema natural de defesa. Mas quando cor­tam e tiram toda a vegetação, a chuva leva a terra. Há enxurradas enormes, a terra vai toda para o mar, que está a 500 metros. Ali existe a maior barreira de coral do mundo, que está a ser destruída assim. As pessoas que lá moravam tinham tentado impedir a constru­ção da estrada: uns enterraram-se até ao pescoço nos sítios onde os buldozers iam passar, outros trepa­ram às árvores e só a polícia os tirou de lá, ma.-; não conseguiram nada. Ainda por cima a estrada, cheia de buracos, não serve para nada.

Fui pelo sul, ao longo da costa, até um pouco depois de Adelaide. Depois, para voltar para Sydney, cortei pelo interior. Na Austrália, a natureza é tão forte que onde acaba a cidade começa logo o mato. Há muitos parques nacionais. Comprava comida nas cidades e depois ia para o parque. Arranjava sempre uma maneira de esconder o carro, pois é proibido dormir nos parques. À noite punha o saco de dormir cá fora e dormia. Gostava de acordar no meio da noite com cangurus a saltarem perto de mini: cheguei a ter uma raposa a centí­metros da minha cabeça. Noutro parque, foram cavalos que me acor­daram. Os dingos é que são perigo­sos. Se estão com fome, atacam as pessoas. Há uma rede. de não sei quantos quilómetros, para não os deixar sair do interior, onde é tudo deserto. Mas é como os tubarões: de vez em quando há um buraco na rede e passam. Também atravessei a zona dos dingos. mas aí nunca dormia muito longe do carro. Na Austrália há cobras e aranhas vene­nosas, dingos. escorpiões, tubarões, crocodilos, bichos perigosos na terra e na água. Quem tem fobia de animais é melhor não ir lá.

Na Nova Zelândia, mesmo ali ao pé, só há um animal perigoso - uma aranha venenosa que vive nos pedaços de madeira que a maré traz, nas praias.

Uns quatrocentos quilómetros antes de chegar a Sydney, gripou o carro. Mas valeu os trezentos dólares que me custou. Tive que acabar a via­gem à boleia. Resolvi então ir até à Nova Zelândia. Cheguei a Christ Church, uma cidade muito bonita, na ilha do sul. A Nova Zelândia é um país super-tranquilo. Lá viajei muito à boleia, mas, sobretudo, andei a pé pelas trilhas das monta­nhas. Fiz 500 quilómetros a pé. Estava tudo muito organizado, com mapas que indicavam onde havia cabanas. As cabanas tinham lareira, camas, e ficavam sempre ao pé dum rio. Na Nova Zelândia não acontece quase nada: às dez da noite, mesmo na capital. Auckland, está tudo na cama. Por um lado é chato - muitos jovens vão para a Austrália -. mas por outro lado é um sossego, não há delinquência. Os agricultores vendem a fruta em tendas à beira da estrada: está lá o preço, uma caixinha para as pesso­as porem o dinheiro e uma balança. Nas bancas dos jornais não está ninguém, e as pessoas põem a gar­rafa do leite com o dinheiro dentro h porta da casa.

Voltei para a Austrália de avião, outra vez sem dinheiro. Arranjei emprego num restaurante, em Sydney. Morava ao pé da praia, e em vinte minutos estava no centro da cidade, de autocarro. No último mês em que lá estive trabalhava dezasseis horas por dia. É horrível quando se entra nesse ritmo, fica-se viciado. Decidi parar. Ir para o norte e tentar arranjar um veleiro para ir para a Ásia. Voltei para Surfers Paradise e arranjei emprego outra vez. Trabalhei dois meses e comprei um carro, branco, enorme. As primeiras vezes que saí devia ter um ar tão desesperadc para arrumar aquilo que as pessoas vinham perguntar-me se eu precisa­va de ajuda. Com o carro fui subin­do para norte. De vez em quando ficava nos albergues de juventude; perguntava se havia alguém que queria vir, dividia a gasolina. Cheguei a Cape Tribulation, o tal lugar de que falei, onde fizeram a estrada. E um sítio primordial, com árvores que já não há em mais lado nenhum há milhares de anos. Fiquei lá dois meses, a trabalhar num barzinho que funcionava com uma bateria de automóvel e fecha­va às dez da noite. Fui para Cairns e comecei à procura de um barco. Depois de várias hipóteses, apare­ceu um casal francês com dois filhos. Eram jovens e simpáticos, achei que eram as pessoas ideais para eu seguir viagem.

PIRATAS E RAPTORES

Rumámos às Filipinas. Era um barco antigo, todo em madeira, comprado na Nova Zelândia. Estava um bocado podre, mas decidimos não fazer arranjos por­que íamos passar numa zona onde havia piratas e quanto mais velho o barco estivesse menos atrairia a atenção. Fomos ao longo da costa, parámos em vários lugarzinhos. Num dos lugares encontrei um gatinho abandonado: resolvi levá-lo como mascote para bordo. Deixámos a Austrália, navegámos entre Papua-Nova Guiné e a Austrália, tentando evitar aproxi-marmo-nos de Papua-Nova Guiné porque era a época das chuvas e nessa altura os rios ficam muito caudalosos e arrastam as árvores das margens até ao mar. Apesar do nosso cuidado, uma noite batemos num tronco de árvore e fizemos um buraco na proa. Tentámos con­sertar por dentro, durante o dia. mas entrava muita água e tínhamos que dar muito à bomba. Já estáva­mos muito cansados. Ao fim do dia o capitão foi para o mar para tentar consertar do lado de fora. Quando ele estava a dar a última martelada, uma alforreca tocou-lhe no braço. As alforrecas daquela zona são mortais, têm um veneno que mata paralisando tudo - até o coração e o sistema respiratório. Ele saiu logo da água, mas o vene­no começou a actuar, com os mús­culos a ficarem sem força. Fomos tentando tudo - esfregamos com vinagre, com gasolina, tudo. Já lhe estava a custar respirar. Houve uma altura em que pensámos todos que ele ia morrer. Começou a dar instruções ao filho, para que tomasse conta da mãe, explicou-me o que é que eu tinha que fazer com o barco. De repente, lembrei-me de ir fazer-lhe um café bem forte. Não sei se foi por isso, ou porque a alforreca. felizmente, só lhe tinha tocado no pulso, o efeito do veneno parou, e depois come­çou a baixar. Durante uns quatro ou cinco dias ainda ficou meio tonto. Continuámos, estava ele a sentir-se melhor, quando tivemos uma tempestade enorme. Eu ia ao leme. quando vejo o gato cair ao mar. Comecei a gritar peio capitão - que não gostava nada do gato. Ele disse "quero lá saber do gato", mas depois teve remorsos. Tivemos que dar a volta, puxar as velas todas para dentro, ligar o motor, ainda demorou um bocado. Mas o capitão era muito competen­te e conseguimos encontrar um gato cinzento, num mar cinzento, com céu cinzento e ondas altíssi­mas. Saltei para o mar e trouxe-o para bordo. O capitão deu-lhe res­piração boca a boca, se não fosse isso o gato não tinha escapado, ainda ficou durante quatro ou cinco dias cheio de febre e com a barriga inchadíssima. Nas Filipinas, por causa do vento e da corrente, tivemos que passar bas­tante perto da ilha de Mindanau. É uma ilha de influência muçulmana, que quer a independência, e onde há mais pirataria. Passámos ali com muita atenção. Por duas vezes, de noite, vi uma luz que vinha na nossa direcção. Podiam ser pescadores, só que ali há mui­tos pescadores que são meio pira­tas. São ainda mais perigosos do que os piratas profissionais porque, como não querem testemunhas, matam. Chamei o capitão, apagá­mos as luzes todas e mudámos imediatamente de rumo. Das duas vezes conseguimos fugir, mas foi uma situação um bocado tensa, porque se nos apanhassem era morte certa. O capitão e a família ficaram numa das ilhas Filipinas -iam fazer consertos no barco. Deixei-os e fui visitar as outras ilhas. As pessoas eram hospitalei­ras: em seis meses fiquei apenas duas noites num hotel, e porque quis. Há muitas casas de madeira, e os filipinos adoram ter casas nas árvores, é engraçadíssimo. Fiquei numa casa dessas e, à noite, ficava toda iluminada, com milhões e milhões de pirilampos. Nas Filipinas falam-se uns quaren­ta e tal dialectos. Uns são mais fáceis, porque têm muitas palavras espanholas. Também há muita influência americana. Para eles. o mundo divide-se em duas partes: as Filipinas e a América, que é todo o resto do mundo. Todos os brancos são "Joe". Na rua. quando me chamavam, diziam "hey. Joe".


Tentei explicar onde era Portugal, mostrei um mapa, foi o mesmo que nada. No final da explicação, per­guntaram-me se Lisboa era mais longe que Chicago. Fui a Mindanau. essa tal ijha que quer a independência. Pouco tempo antes tinham raptado um turista suíço e o governo desacon­selhava os turistas a irem lá. Mas. claro, resolvi ir. Numa das zonas da ilha. considerada a mais perigo­sa, tinham acabado de raptar um padre e uma freira, também estran­geiros. O movimento de indepen­dência quer conseguir assim reco­nhecimento e publicidade. Mas como os filipinos são muito hospi­taleiros, tratam muito bem os rap­tados. Disseram-me, ou li, que os raptores até perguntavam à freira e ao padre o que é que eles queriam comer, do que é que gostavam.Eu queria visitar todas as zonas da ilha, mas na família em casa de quem eu estava havia uma velhota que me pediu de joelhos que não fosse a essa zona. "Não vá, porque a vão raptar". Eu tentei explicar à velhota que não me importava nada que me raptassem porqi'e ia ser bem tratada e comer e dormir de graça, mas ela até chorou e eu desisti de ir.


NA CHINA

Das Filipinas decidi ir para Hong-Kong, mas não consegui passagem de barco. Fui de avião e foi um choque enorme, sem transição, depois daquele tempo todo a vele­jar. Fiquei dois dias e resolvi ir para Macau. Estive lá uma semana e gostei muito. Macau tem restau­rantes portugueses, comi bacalhau; ainda é muito português, as ruazi­nhas, as casas estilo colonial, ape­sar de praticamente ninguém falar português, a não ser nos serviços do governo ou na televisão e rádio. Voltei para Hong-Kong, já mais preparada. Entretanto tinha encon­trado várias pessoas que tinham ido à China e me deram várias informações. Para turistas era muito caro. mas com um cartão de estudante saía barato - podia ser um cartão de Taiwan. dado que os chineses acham que Taiwan é China. Nessa altura havia um mercado negro de cartões de estudante, em Hong-Kong. As pessoas que voltavam da China e não precisa­vam mais dos cartões vendiam-nos ou davam-nos. Havia casos engra-çadíssimos de mulheres a viajarem com fotografias de homens barbu­dos, e homens barbudos a viajarem com fotografias de mulheres, e os chineses não notavam nada. por­que nós para eles somos todos iguais, como eles são todos iguais para nós. Arranjei um cartão e fui para Cantão. Fiquei impressiona-díssima com um mercado, enorme. Os chineses comem macacos, e no mercado estão pendurados patos, galinhas, e macacos. Esfolados, em posição fetal, é horrível. Os únicos hotéis que havia na China, nessa altura, eram do governo e os funci­onários não estavam nada motiva­dos para trabalhar, não ganhavam mais por isso. Mesmo que o hotel i estivesse vazio, diziam que não • havia quartos. Sentava-me um bocado, e depois perguntava outra vez, esperando que eles estivessem com mais energia. Mas era cansati­vo, não havia alegria, por isso, em vez de ir para Pequim ou para Xangai, fui para oeste, para a zona mais perto das fronteiras com Burma e com Laos. É uma zona menos chinesa, com etnias diferen- . tes, no passado foram povos inde- j pendentes. Aí já havia outro ambi­ente, muito mais alegre. Depois fui mais para o sul e cheguei mesmo à fronteira. As pessoas eram muilo diferentes, vestiam-se com cores garridas e com trajes tradicionais, em vez daquele eterno azul escuro e verde escuro dos chineses. Havia uma cidadezinha que tinha sido aberta a estrangeiros uma semana antes. Encont rei lá uma pintora inglesa. Ao domingo havia um mercado, cada tribo vinha trocar os seus produtos e ao fim do dia vol­tava para a sua aldeia. A pintora ficou interessada nos trajes das mulheres duma das tribos, queria fazer uns desenhos. Eu também achei lindos os casacos delas, quis comprar um, mas quando tentava explicar-me por gestos elas não entendiam e tinham medo. Resolvemos seguir essas mulheres até às montanhas. Foi uma experi­ência única: fomos as primeiras ocidentais a aparecer por ali. Viram-nos ao longe, e quando che­gámos a aldeia estava vazia. Fugiu toda a gente. Sentámo-nos, a ingle­sa começou a desenhar, até que começaram a aparecer umas cabe-cinhas atrás dumas árvores. Depois foram-se aproximando, aproxi­mando... Passado uma hora quase não tínhamos espaço para respirar, estava a aldeia inteira a centíme­tros de nós, todos, e não falavam, só olhavam. Depois houve alguém que começou a tentar falar-nos no dialecto deles e acabaram por nos levar para casa de uma das famíli­as. As casas eram quase todas em cima de estacas. Dormimos nessa casa. Só tinha uma divisão, muito grande, e no meio tinham uma fogueira, para cozinhar. Era o marido que cozinhava. Foi difícil dormir por causa dos ratos, que corriam e passavam por cima de nós. Nem vi o tamanho dos ratos, preferi não abrir os olhos. Mexia-me muito, para eles sentirem que estava ali alguém. Ficámos um dia ou dois, depois fomos para outra aldeia, passámos assim duas sema­nas.


Depois subi até uma cidade de cujo nome não me lembro, apanhei um barco e desci o Rio Amarelo até metade do percurso. Uma coisa que é difícil de suportar na China é a propaganda política. Na área onde estive, havia altifalantes em todas as aldeias, vilas e cidades. Em esquinas, bem altos, geralmen­te bem peno do hotel onde eu esta­va a dormir. Já não podia com aquilo. Não imagina as fantasias que eu tinha para calar aqueles alti­falantes, tesouras, bpmbas, espin­gardas, tudo. Entrei no barco para descer o Rio Amarelo... Não pare­cia mau. Ia num camarote com uma canadiana e um casal de chi­neses rechonchudinhos. Fomos dormir e no dia seguinte, à seis da manhã começa a propaganda. Havia altifalantes à volta do barco e, por azar, um mesmo em frente do nosso camarote. Finalmente fiz o que tinha sonhado: nessa noite deitei-me, por volta da meia noite acordei, levantei-me, e com o meu canivete cortei os fios. Fiquei feliz, e ninguém deu por nada, eles tam­bém já não ligam àquilo. Saí do barco e voltei de comboio para Cantão. Os comboios chine­ses são piores que os indianos. Os indianos pelo menos têm barras nas janelas, mas na China não. e as pessoas entram e saem pelas jane­las. Às vezes entrava em pânico a pensar que não conseguiria sair onde queria. Nunca aconteceu, mas atirei-me pela janela várias vezes. E ninguém fala inglês, e têm noções de gestos, de mímica, com-pletamente diferentes da nossa. Tirando a estadia nas montanhas fiquei sempre em hoteizinhos. em dormitórios, porque na China um quarto particular é caríssimo. Dormitórios de oito ou dez pesso­as, às vezes mais. Era horrível por­que os chineses dormem de luz acesa, batem com as portas e têm um hábito horroroso: a partir das quatro da manhã, começam a lim­par a garganta, a toillete deles começa por isso. E só havia água quente das sete às nove da noite. Os duches são compartimentos sem porta. Eu ficava à porta da casa de banho das mulheres, à espera que as chinesas acabassem, e elas achavam esquisitíssimo eu querer estar sozinha. Juntavam-se às três e quatro no mesmo duche e demoravam imenso tempo a esfre­gar-se; acho que se lavam uma vez por mês. Também achavam esqui­sito eu ficar cinco minutos no duche. E as retretes são um cubícu­lo com um buraco. Cai tudo num poço, as pessoas vêm com uns bal­des e levam para servir de estrume nos campos. E também não há porta: os chineses não têm noção de privacidade. Às vezes eu estava num cubículo, viam uma estrangei­ra e ficavam pasmadas a olhar, sem cerimónia nenhuma. Eu saía dali o mais depressa que podia.


Quando voltei a Hong-Kong pare­cia que estava a voltar doutro planeta. •


A seguir, enfim a índia. Mas antes disso, ainda milhares de quilómetros a pé e outros sustos. Até à descoberta do "oceano de sabedoria ".

A Descoberta da India I

Neste relato índia é o nome da protagonista, mulher viajante, eventualmente também o subcontinente conhecido pelo mesmo nome. Os caminhos da descoberta foram marítimos, terrestres e todos os mais que conduzem às alquímicas transformações da pessoa que viaja. Não é uma comemoração dos descobrim
entos, é um descobrimento.


Relato de índia de Sousa, recolhido por Isabel Barreno



"E uma mulher muito interessante, encontrei-a quando estive na índia", disse-me laconicamente a amiga que nos apresentou. Assim conheci a índia que a minha amiga conhecera na índia, desde logo intrigada pela coincidência de nomes.

Índia apareceu, calma e sorridente.

É esse o primeiro traço que nos surpreende, a naturalidade bem-humorada com que conta as suas viagens, como se contasse a ida ao café da esquina. O planeta inteiro não é para ela mais do que uma sucessão de passos tranquilos, de rostos e gestos humanos, em tudo índia descobre detalhes interessantes, signos de conhecimento. Ri-se com frequência, de si própria, das situações. Assim fez uma volta ao mundo vagarosa, numa viagem cujo sentido se foi revelando à medida dos percursos cumpridos.

Respeitando a regra do itinerário, nada mais revelarei neste prólogo, nem mesmo o segredo do seu nome, deixando as surpresas acontecerem na ordem da narração desta descobridora contemporânea.

Conversámos longas tardes, sempre sem pressas, em cada encontro surgiu com um pequeno presente, uma bolsinha, uma tisana de ervas raras, tesouros de convivência, aqui no Ocidente tão perdida:

MARENOSTRUM

Nada parecia fadá-la para aventuras extraordinárias, filha duma família lisboeta bem implantada no "como deve ser" da vida. Dessas raízes fala pouco; refere com um sorriso a apreensão e incompreensão dos seus familiares perante um percurso para eles Ião extravagante. Aliás é também esse o sentido do seu rebaptismo, do quase anonimato no novo nome que escolheu: não uma revolta, antes um crescer para além dos limites previsíveis e comuns, um renascer em circunstâncias criadas por ela própria.


Aventurou-se aos poucos. Primeiro apenas com as pequenas rebeldias e transgressões próprias da juventude. Foi nos anos 70. "Vi um anúncio no jornal, da Air Maroc. a pedir hospedeiras de bordo. Tinham começado uma linha Casablanca-Rio de Janeiro, precisavam de pessoal que falasse português. Foi assim que saí de Portugal, com duas amigas. Fomos para Casablanca. Na inspecção médica descobriram que usávamos lentes de contacto, não fomos aceites. Tínhamos de voltar, mas ficámos escondidas no hotel onde estavam as que tinham sido aceites. Dormíamos e comíamos clandestinamente, consegui ficar durante uns meses."

De Casablanca seguiu para Paris, tudo ainda dentro dos conformes da época. Ficou em casa de uma amiga, arranjou emprego no Club Mediterrannée como relações públicas. Acrescente-se que fala seis línguas. Parte para Marraquexe, para um dos hotéis do Club, e descobre com aflição que o seu trabalho incluía fazer espectáculos. "Eu, nessa altura, ainda era muito tímida. Normalmente eram 'playbacks', e o primeiro espectáculo de tive que fazer tinha aquele número da Lisa Minelli, do 'Cabaret'. Estava tão envergonhada que bebi uns bons whiskies para os nervos. As francesas têm todas um pé muito grande e no guarda-roupa não havia sapatos para mim. Tive de usar uns sapatos com um salto altíssimo, uns dois tamanhos acima do meu. Tínhamos que subir para as cadeiras, um pé ficava no assento e o outro no espaldar, e tínhamos que sacudir as ancas. Perdi o equilíbrio e caí da cadeira abaixo. Acabou por ser um número cómico de grande sucesso. E ajudou-me imenso a ganhar confiança e a perder a vergonha. Foi uma experiência muito boa."

Um pequeno incidente, apenas, não fora ir conjugar-se com discretas aspirações. Sempre gostou de conhecer mais intimamente os lugares, as pessoas. Findo o contrato e ganha a confiança, foi viajar pelo sul de Marrocos, sozinha pela primeira vez. Novo contrato com o Club Mediterranée, o Egipto, o museu do Cairo, nova excursão sozinha. Tudo ainda à volta do "mare nostrum", aventura comedida. Depois, o Brasil. Ainda com o Club. em Salvador da Bahia. Juntou dinheiro, no seu tempo de formiguinha, em Salvador. Foi até Maceió de camioneta, achou aborrecido. Entrava na camioneta, viajava com mais quarenta pessoas, mas passados 300 quilómetros não conhecia ninguém e não sabia nada dos lugares por onde tinha passado. Resolve viajar à boleia. Começa aqui o seu primeiro voo de longo curso. Deixo-lhe o fio da história, onde interferi o menos possível.

O NOVO MUNDO

"Todo o tipo de pessoas me dava boleia - caixeiros viajantes, camionistas. Às vezes entrava num carro ou numa camioneta e sentia que se não pusesse logo uma barreira ia haver problema. Então contava que era estudante, que não tinha dinheiro e estava de visita a familiares, no Brasil, para eles ficarem com a ideia de que alguém sabia onde é que eu estava. O facto de eu falar da minha família, e de os fazer falar da família deles, criava outra conexão.


Acho que foi isso que me salvou muitas vezes. Estas experiências deram-me confiança para acreditar que no fundo todos temos um bom coração, apesar de superficialmente sermos diferentes. A partir daí perdi qualquer receio de viajar pelo mundo. Passei por Recife, Fortaleza, S. Luís do Maranhão, até chegar a Belém, onde desagua o Amazonas; aí subi o rio de barco até Manaus. "De Manaus fui para o sul, para Mato Grosso. A estrada é de terra vermelha, e só dá para camiões. Dos dois lados é a selva. Selva mesmo, impenetrável.

"Os camionistas vão buscar madeira para trazer para o sul do Brasil. Debaixo do camião têm uma caixa com o fogão, o arroz e o feijão. À noite param, cozinham a comida e dormem dentro das cabines, porque ali não há nada durante centenas e centenas de quilómetros. Só pitons enormes, que atravessam a estrada, e às vezes não se vê bem onde começam e onde acabam, panteras negras, e uns macacos com umas cores incríveis.

"Ao princípio estava com um bocado de medo. As poucas aldeias que se encontram são igualzinhas àquelas aldeias do faroeste, dos filmes. As casas, todas de madeira, à frente têm uma varanda, onde amarram o cavalo. Andam todos de pistolas, à noite ouvem-se tiros, mas ninguém vai lá ver o que é. Demorámos duas semanas para fazer mil quilómetros, porque a chuva tropical abre buracos enormes na estrada de terra. "Há muitos acidentes, e há uma solidariedade incrível. Quando um camião capota ou fica atolado, os outros não saem dali enquanto não o puserem direito. Dependem todos uns dos outros, não há mais ninguém que possa ir lá ajudar. À noite, pendurava a minha rede entre duas árvores, e dormia... Com a rede é seguro, os bichos não chegam lá". Aqui permito-me uma intervenção, relembro-lhe as cobras, as panteras. Ri-se. "Nem pensava nisso. Era tudo tão forte, tão bonito. Uma noite pendurei a rede, estava escuro, adormeci.

No dia seguinte descobri que estava rodeada de árvores carregadas de frutos. Pode-se perfeitamente sobreviver, alimentando-nos só de fruta. Atravessei o Mato-Grosso assim. Quando chegámos à estrada alcatroada, comecei outra vez à boleia até Brasília, depois até Minas Gerais. Em Minas Gerais aconteceu uma coisa que nunca hei-de esquecer. Começou a chover, daquelas chuvas tropicais. Não dava para amarrar a minha rede entre duas árvores. Procurei uma pensão e pedi à dona para me fazer uma redução de preço. Ela recusou. Havia uma varanda na frente, e eu sentei-me ali, à espera que parasse de chover. Uma miúda que fazia a limpeza no hotel, devia ter uns 14 anos, tinha ouvido a conversa. Quando acabou o trabalho, chamou-me e levou-me para casa dela. A casa tinha paredes de cartão, chão de terra batida. Morava ela, a avó, que era uma velhinha, e um bebé. Deram-me a única cama que havia na casa. Eu não queria. Insistiram. Deram-me comida, foram comprar rebuçados para me oferecer e dormiram no chão. Fiquei muito comovida com tanta bondade. Foi uma experiência maravilhosa. Melhor do que se eu tivesse ficado no Sheraton." A viagem durou dez meses, acabou em S. Paulo, juntamente com o dinheiro.

A CELEBRAÇÃO DO SOL

"São Paulo é uma cidade muito poluída. Ninguém tem tempo para nada a não ser trabalhar e correr. Comecei a pensar no Peru, em Cuzco. Em Junho há o Solstício, era celebrado pêlos Inças e continua a haver essa tradição da celebração do Sol. Há um festival, com grupos folclóricos de todo o Peru e Bolívia. Saí de S. Paulo no princípio de Maio. Fui de comboio até à fronteira, e depois à boleia. A única maneira de andar à boleia na Bolívia e no Peru são os camiões, só que eles já levam passageiros, amigos ou família, e normalmente só há lugar em cima da cabine, numa espécie de caixa onde levam o pneu sobressalente. Pode-se ir sentado dentro da caixa, ou, quando está cheia, em cima da carga, geralmente arroz ou açúcar. Era confortável, mas muito frio, e chegava aos lugares com a cara negra da poeira da estrada. Atravessei a Bolívia, assisti ao festival e depois resolvi ir até Matchupichu. Pode-se ir de comboio, como fazem os turistas, ou a pé pelo caminho dos Inças. Em Cuzco, encontrei uma francesa e combinámos ir a pé. Nenhuma de nós tinha equipamento. Resolvemos levar batatas e ovos já cozidos, tomates, chocolate, queijo, e uns cobertores, amarrámos tudo com cordas para levar às costas. Começámos a subir e, ao fim do dia, parámos para dormir, só com os nossos cobertorzinhos. muito satisfeitas. Apareceram então uns franceses, alpinistas profissionais, que estavam ali perto. Ficaram loucos, disseram-nos que íamos morrer de frio. Emprestaram-nos sacos de dormir e fomos para as tendas deles.

Na manhã seguinte, quando abrimos a tenda, estava tudo coberto de gelo. Aparecem sempre as pessoas certas no lugar certo. Cada vez acredito mais nisso. Quando estou numa situação muito difícil, digo que não vale a pena enervar-me, e que vai aparecer uma solução.

"Nesse dia separámo-nos dos franceses, eles caminhavam mais depressa. A partir daí planeámos não subir tão alto para dormir. Comíamos o que tínhamos, que era pouquinho. No terceiro dia perdemo-nos, cheguei a pensar que íamos morrer. Ninguém sabia onde estávamos, ninguém nos viria procurar, se não voltássemos a encontrar o caminho era morte certa. Descobrimos um abrigo de pastores e nessa noite dormimos ali. No dia seguinte conseguimos chegar a Matchupichu. Havia uma greve de comboios, não havia ninguém, tínhamos Matchupichu só para nós. Indo a pé, chega-se de cima, é lindo. Há umas termas de água quente ali perto, tomámos um banho delicioso. Depois tivemos que voltar andando pela linha de caminho de ferro - ainda havia greve -, foi muito cansativo. Voltei a Cuzco e fui até Lima à boleia. No Peru e na Bolívia, à saída de cada aldeia há um controlo da Polícia; eu ia para lá, falava com o polícia, dizia que era estrangeira, ficava sentada dentro da casota e era ele que falava, por mim, com os camionistas. Dormia normalmente nos conventos. Todas as aldeias têm um convento, e as Madres nunca me deixaram ficar na rua. Aprendi muitas canções populares com as crianças que frequentavam as escolas conventuais. No Chile e na Argentina era mais difícil. Ia a uma igreja, falava com o padre, e ele normalmente arranjava alguém que me dava um lugar para dormir. Só em Valparaíso e Santiago, que são cidades grandes, fiquei em pensões. As cidades foram criadas para facilitar a comunicação, mas em todo o mundo são os lugares onde há mais falta de comunicação humana. Assim fui conhecendo pessoas interessantes e tive oportunidade de ver como viviam, o que comiam, como se relacionavam em família.

"As pessoas estão sempre tão dispostas a ajudarem e a darem comida! Hoje em dia sinto que tenho família no mundo inteiro." Repete a conclusão que já esboçara em Minas Gerais. "Foram sempre as pessoas mais humildes que mais me ajudaram. As poucas vezes que bati à porta de casas mais abastadas, fecharam-me a porta na cara." De Buenos Aires, onde tinha amigos, regressa a São Paulo. Fazemos uma pequena pausa nas viagens. Volto a algumas curiosidades insaciadas. Como é que uma ida ao Brasil, ainda tímida nos propósitos, se transformou numa viagem que já soma dois anos por esta altura dos acontecimentos? Toda esta capacidade de deambular sem preocupação de futuro nasceu como? Apenas das aventuras já relatadas? Confessa outros segredos inatos. "Nunca vi a vida em blocos: fazer o liceu, a faculdade, casar... Nunca me preocupei com segurança, poupar, planear. agendar datas. Se tivesse feito planos. nunca teria feito o que fiz. Gosto de desafios, de aventuras, do inesperado. Viajando sem prazos, nunca tenho pressa nem estou atrasada. Viajando sem destino, nunca me perco e estou sempre no lugar certo. "Claro que às vezes não ë tão simples assim. Mas o essencial é manter um espírito aberto e flexível. Mesmo que as pessoas façam planos, pode ser que não se concretizem. A única coisa cena na vida é a morte, o resto pode acontecer ou não; e como se gasta tanta energia a planear, depois há muita frustração, muita angústia e depressão. Quando a vida é improvisada, é mais fácil sentir alegria com coisas simples."


Em São Paulo falei com um amigo meu. de Salvador, que estava para abrir uma danceteria com dois sócios: queriam alguém que tivesse experiência de relações públicas. Um deles trabalhava na rádio, e fizemos tantos anúncios que quando abrimos o bar foi uma loucura. As pessoas saltaram os muros, entraram pela janela da casa de banho. Eu estava na porta a tentar controlar, mas a sala enchia-se cada vez mais. Aguentei uns quatro meses, mas não sou pessoa para viver de noite. Tinha que aturar os bêbados até às seis da manhã, resolver as chatices. Decidi tirar duas semanas de férias. Saí do «Singapura», levei uma escova de dentes, um par de shorts e duas t-shirts e fui passar quinze dias de férias a Porto Seguro.

"Porto Seguro é uma vila histórica, foi onde os portugueses desembarcaram. É muito bonito, com muitas esplanadas. Muitos jovens que não queriam morar na cidade tinham construído casas ali. Era um paraíso ainda por descobrir. Fiz amigos. A vida era fácil, dormia na rede entre os coqueiros, havia o mar. a água de coco. Levei dinheiro para duas semanas e fiquei nove meses sem problema nenhum: havia um ambiente muito comunitário, as pessoas ajudavam-se imenso.

Passados esses nove meses telefonei aos meus sócios. Tinham-me pago com cheques, eu não os levantei e. entretanto, eles tinham fechado o «Singapura» e gasto o dinheiro todo. Fiquei sem nada.

"Entretanto comecei a fazer caminhadas pela praia e descobri essa aldeia. 40 quilómetros a sul de Porto Seguro. que se chama Caraíva. Nessa altura, só tinha pescadores. Havia lá uma casa onde ninguém queria morar, porque anos atrás tinham morto aí muitos índios, parentes dos que ainda vivem numa reserva naquela área. e todos acreditavam que os espíritos dos assassinados ainda por lá andavam. Quando cheguei, deram-me a chave da casa e disseram-me que eu podia ficar.

"Havia um rio bastante largo e a casa ficava na margem do rio. A casa era de madeira, a parede que dava para o rio tinha desabado e o quarto só tinha telhado e três paredes, com vista panorâmica para o rio. Nas noites de lua cheia, o luar reflectia na água do rio e o quarto ficava todo a cintilar. Parecia que estava numa casa de sereias, ou de fadas, e ouvia o barulho da água. Às vezes tinha um certo medo dos espíritos. "Fui ficando. Ia pescar com os índios, comecei a manobrar as canoas, j Apareceu uma pessoa que queria ven der uma casinha, com terreno atrás, por 15 dólares e eu comprei. Pintei a casa. comecei a tomar conta do jardim e a plantar. Comecei a aprender artesanato com os índios. Eles trabalhavam com conchas, com bambu e com penas que coloriam, e eu fazia cortinas, brincos.

"Mesmo em frente de mim morava uma velhinha índia, com a cara toda engelhada, que me fez um cachimbo de noz de coco. Eu fumava cachimbo e achava que parecia «ma bruxinha. De três em três semanas ia a Porto Seguro fazer compras. Fazia os 40 quilómetros a pé.

Ao princípio, cheguei a ficar com os calcanhares em sansue. de roçar na areia. E dormia em Porto Seguro. Depois, já conseguia ir e voltar no mesmo dia, quando havia lua: ia numa maré bem cedinho, comprava as coisas e chegava de noite, com a lua...

"Até que uma dia cheguei a Porto Seguro - havia as festas da cidade. Uns amigos insistiram para eu ficar uns dias e, como tinha vontade de me divertir e dançar, fiquei. Telefonei aos meus ex-sócios do 'Singapura', e soube que um vinha para Portugal. Ia fazer uma festa de despedida e insistiu para que eu fosse. Deixei as compras em casa de uma amiga e fui para Salvador. Aí encontrei um francês que ia levar uma escuna para o Rio. para o barco ser reparado. Iam várias pessoas de Salvador e do Rio. e convidaram-me para ir. Eu já tinha velejado um bocadinho, em Porto Seguro. e tinha gostado muito. Pensei: já agora, em vez de ir de Salvador a Porto Seguro, que são mais ou menos 700 quilómetros, vou até ao Rio e apanho a camioneta para voltar para Porto Seguro. Fui no barco. Antes Je chegarmos ao Rio. parámos em Búzios. Ficámos umas três noites. Numa das noites fui a um restaurante: a dona precisava de ajuda imediata para servir e pagava bem. Comecei a pensar que. se trabalhasse um mês. podia voltar e comprar mais terreno, e então ficar a viver em Caraíva tranquila e por muito mais tempo. "Deixei o barco, fiquei. Enquanto lá estive, conheci um português que tinha comprado um barco pequeno. de 27 pés. e não sabia velejar. Metíamo-nos ao mar. fazíamos montes de asneiras, mas assim aprendemos os segredos da vela. Num fim-de-semana resolvi ir. finalmente, ao Rio. Vi um anúncio que pedia tripulação e senti curiosidade. Era um barco de madeira, sem motor. O dono era um sueco que estava a dar a volta ao mundo, ia passar pelas Antilhas e atravessar o Panamá. Ia com a namorada e um sul-africano. precisava de mais uma pessoa. Pensei que podia aproveitar a viagem para ir ao México. Os Maias, os Aztecas. as pirâmides, tudo isso me fascinava. Um ou dois meses, e depois voltava. "Resolvi ir. Parámos em Porto Seguro, mas nem perguntei pelas minhas compras: já devia estar tudo podre. E não deu tempo para ir à minha casa. Nunca mais lá voltei. Hoje já lá deve estar outra pessoa a morar. Nem fechei a porta à chave". Assim se despediu Índia duma época maravilhosa, duma casa encantada, Sem olhar para trás. Com um projecto de México que nunca aconteceu.


NAS ANTILHAS

"Parámos em Salvador. Recife. Fortaleza, depois fomos directos ate Barbados, nas Antilhas. Eu nesse tempo era muito exuberante, vinha do Brasil, e a namorada do sueco, também sueca, começou a ficar com ciumes. O ambiente tornou-se meio pesado. Em Barbados eu queria sair do barco. Mas para ser autorizada a desembarcar precisava de uma passagem de avião para o Brasil ou Portugal, ou do dinheiro equivalente num banco. Foram uns dias difíceis, em que aprendi que é mais fácil contornar a lei que enfrentá-la. Um dia, eu ia na rua e cruzei-me com um sujeito que tinha uma t-shirt em que estava escrito 'SE NÃO OS PODE CONVENCER. CONFUNDA-OS'. Pensei naquilo e achei a solução. Encontrei um barco que fazia cruzeiros naquelas ilhas e consegui convencê-los a levarem-me um fim-de-semana. Isso já deu à Polícia de Imigração a ideia de que eu ficaria a trabalhar com eles, e o dinheiro que ganhei deu para depositar no banco. Entretanto. descobri um albergue de juventude, numa casa enorme, do tempo dos ingleses, que também tinha um centro de ioga. Fiquei lá a fazer limpeza. Recomecei também a fazer ioga, que já tinha feito em Marrocos, e em breve comecei a dar aulas. Dava para viver lá, para comer, mas não tinha dinheiro. Resolvi começar a fazer pulseirinhas de macramê. E conheci também dois sujeitos que tinham um catamaran e que faziam viagens de um dia. Fui também trabalhar com eles. Levávamos as pessoas até outra baía, onde almoçavam, depois eles iam fazer ski ou mergulho, e eu saía com as minhas pulseirinhas de macramê: ia vendê-las para as portas dos restaurantes. Quando as pessoas acabam de comer ficam mais bem-dispostas, mais generosas. Vendia sempre duas ou três pulseirinhas. "Estive lá uns seis ou sete meses e fiquei com vontade de ver outros lugares. Quando passávamos em frente do Yatch Club, via se tinha chegado algum veleiro. Um dia chegou um. Contactei o dono, um americano. Ele e a mulher estavam sozinhos, já tinham sessenta e tal anos, e queriam alguém que tratasse das manobras. Não me pagavam, mas davam-me a comida e a passagem, íamos fazer um cruzeiro nas Antilhas, subir devagar, passando pelas Bermudas, até aos Estados Unidos. Eles moravam em Martha's Vineyard, disseram que podia ficar em casa deles até encontrar emprego: lá morava muita gente rica e famosa e «ria fácil arranjar trabalho de limpeza. Só que eles eram mesmo avarentos. Controlavam tudo, tudo. A comida era pouca. Quando chegámos à ilha de Santa Lúcia era a época do Natal. O casal americano foi passá-lo aos Estados Unidos com a família, e eu fiquei ali com o barco. "Um dia saio do barco, de manhã, para ir à casa de banho, que era em terra, e vejo em frente um 'Swan', que é um barco maravilhoso, o 'Rolls Royce' dos barcos. Sai um homem do 'Swan' e fica a olhar para mim. Convidou-me para irmos tomar um café, explicou-me que o barco pertencia a um milionário alemão. O barco ia dar a volta ao mundo, mas o alemão só viria de avião ter com o barco nos lugares que lhe interessavam e em que haveria cruzeiros. Pagavam quinhentos dólares por mês. para dar a volta ao mundo num barco daqueles. Pagavam-me, para viajar. Aceitei logo. Ele disse: 'Então fica combinado. O dono vai chegar daqui a uma semana, vamos dar uma volta aqui nas Antilhas, depois vamos para Curaçau, a seguir ele volta para a Europa, e nós vamos até o Tahiti. e ele volta outra vez...' E foi então que me perguntou: 'Então o que é que tu sabes cozinhar?' Fiquei sem fala. Não tinha percebido que ele queria uma cozinheira. Até aí só tinha cozinhado para mim, sem preocupações. Ele achou que se resolvia a questão. 'A cozinheira que se vai embora ainda fica uma semana - disse ele. Ela ensina-te'. Fomos até ao Panamá, passámos o canal, entrámos no Pacífico.



O Incrível Tahiti

"Acho que o capitão, o que me tinha contratado, pensou que íamos ter um caso, e quando descobriu que não. tudo foi piorando. Ele era um verdadeiro nazi. Apesar de tudo. sentia-me bem. ali no meio do mar. Ainda não consegui encontrar o meu limite, quer dizer, deve haver um limite, uma altura em que se quer chegar a terra, mas a viagem mais comprida que fiz sem ver terra durou um mês e poderia perfeitamente continuar. É um silêncio, mas não é um silêncio como no deserto, porque há sempre aquele barulho da água, há sempre um vento, uma energia tão antiga e que nunca se gasta... "Chegámos ao Tahiti. Pensei arranjar trabalho, mas era impossível. Tem que se ter um visto de trabalho. Então pensei ficar e ir contactando barcos. Mas não dava para sobreviver, mesmo pouco tempo. O Tahiti é o lugar mais caro que eu já vi em todo o mundo. Não produzem nada, tudo é importado. Têm muito turismo, é uma aldeia turística pegada.

“Escolhi Índia”

"Estava um bocado desanimada. Voltava para o barco a pensar na vida, quando saiu de outro barco um homem, que também vinha distraído, e chocámos um com o outro. Ele já
tinha reparado no 'Swan' - toda a gente reparava - e perguntou-me: 'Você trabalha naquele barco? Não está à procura de um emprego, pois não?' Respondi-lhe que sim. Ele disse que também estava à procura de alguém e convidou-me para ir a bordo beber um café. Mais um desses cafezinhos que foram mudando a minha vida!

"O barco dele era também de luxo, mas não tão bonito quanto o outro. Ele fazia charters. as pessoas chegavam de avião, já tinham reservado com antecedência, e nós levávamo-las a passear até Bora-Bora. Comecei logo a trabalhar com ele no dia seguinte. Como cozinheira, mas também disse que queria trabalhar no convés. Ele tinha uma namorada tahitiana e uma casa em Papeete. Quando o barco estava em Papeete, entre os charters. que duravam uma ou duas semanas, ele ficava em casa com a namorada. Durante bastante tempo, ancorou o barco em Huahine. para mim a ilha mais bonita do Tahiti. com uma baía maravilhosa dentro dos recifes. Estávamos ancorados a uma profundidade de 12 a 15 metros e via-se o fundo, a água era cor de esmeralda, e tínhamos o barco só para nós: eu e o resto da equipagem, um canadiano e um americano. Quando não tínhamos charters ele não nos pagava, mas dava-nos a comida e morávamos no barco. Tive sorte porque no primeiro charter foram dois casais de americanos. Os europeus quando vão de férias estão sempre a criticar, querem tudo perfeito, mas os americanos vão para se divertir, seja qual for a situação querem aproveitar o máximo, acham tudo divertidíssimo. Foi bom para começar, deram-me imensa coragem. Depois veio um casal de franceses, que são o oposto. Nada estava bom, a carne estava cozida demais ou cozida de menos, o tempo não estava bom. Mas nós os quatro dávamo-nos muito bem. Quando tivemos o barco em Huahine foi maravilhoso. Não há pessoas por ali, só fora dos recifes, e tínhamos um bote para ir a terra, com motor. Fazíamos ski de manhã à noite.

Estive no Tahiti oito ou nove meses. "Entretanto, o meu passaporte tinha acabado e no Tahiti não há consulado. Tive que mandar o passaporte para Portugal. Saíam muitos veleiros para a Austrália, mas eu não podia ir. "Os donos dum veleiro pequeno pediram-me para lhes guardar o barco enquanto estavam fora. Fiquei a morar aí, esperando o passaporte. E comecei a pensar que gostaria de mudar de nome. No decurso da viagem tinha mudado bastante, de certa maneira não era a mesma pessoa. Fiz uma lista de nomes de que gostava e finalmente escolhi índia: é bonito, recordava-me o Brasil, os índios com quem tinha vivido e pêlos quais sinto muito carinho por serem um povo oprimido, e era o nome dum país que não conhecia, mas onde imaginava encontrar pessoas como Gandhi, ascetas, ioguis e magia. Só há cerca de um ano me dei conta que o Tahiti está a meio caminho entre Caraíva e a índia, onde acabei por encontrar tudo o que imaginara." Mas até lá ainda nos faltam outros capítulos.


•Na segunda parte atravessaremos o resto do Pacífico, com piratas e alforrecas venenosas, passaremos pela Austrália e a Nova Zelândia, chegaremos, enfim ao continente asiático.