quinta-feira, 7 de junho de 2007

BOLSA DE VIAGENS - ÍNDIA DE SOUZA

Em Viagem

Quem pensava que já não exis­tiam aventureiros portugueses enganou-se. Tivemos, recente­mente, o privilégio de conhecer uma verdadeira aventureira do século XXI. Chama-se índia, tem 39 anos e é do signo Carneiro com ascendente em Leão. Nasceu em Lisboa e, apesar de ter um bilhete de identidade português, diz que as suas raízes já não estão em Portugal. É o oposto do turis­ta clássico. Ao fim de dezanove anos de viagens, as fronteiras dei­xaram de fazer sentido para ela. A sua família passou a ser a huma­nidade.

índia acha muito importante viajar para aprender e alargar os seus horizontes. "O ideal é não viajar apenas para conhecer os sítios turísticos, mas também para conhecer e conviver com outras culturas". Perdeu uma posição na sociedade, uma família e um emprego estáveis, mas não se arrepende nem um minuto. Acha até que ganhou muito mais com a escolha.

Hoje, vive em Daramsala, num instituto de língua e filosofia tibetana, dirigido pelo Dalai Lama. Daramsala é uma pequena aldeia nas montanhas (2000 m), a 400 quilómetros da fronteira com o Tibete, onde vivem dez mil tibetanos — a maior comunidade residente no estrangeiro — c uma população flutuante de cerca de 300 ocidentais que costumam ir para lá passar temporadas de estudo e meditação. Mas este número de visitantes estrangeiros tem aumentado de ano para ano e índia conta-nos que gente famosa como Richard Gere, Cindv Crawford, Harrison Ford, Mme Mitterrand, Shirley MacLaine c cientistas de renome são alguns dos habitues e seguidores do budismo tibetano do Dalai Lama.

Na opinião de índia, conhece-se mais gente interessante em quinze dias de Daramsala do que em quinze anos de Portugal.

Confessa-nos que é um sacrifí­cio ter de vir a Portugal ou a qualquer grande cidade, pois tem dificuldade em lidar com o lado material, com a burocracia e com a constante correria com que toda a gente se atropela. Em contra­partida, diz ter um relacionamen­to muito fácil com as pessoas, embora seja difícil lidar com os habitantes de uma cidade grande. "As pessoas andam muito des­confiadas. Se lhes sorrio ficam logo desconfiadas e a pensar quais serão as minhas inten­ções..."

Não tem nada contra o pro­gresso, mas critica bastante a dependência de um materialismo desenfreado c uma total falta de valores espirituais. Acha que, no Oriente, as pessoas sofrem fisica­mente e, no Ocidente, sofre-se espiritualmente. E é neste campo que gostaria de trabalhar no futu­ro: ajudar a fazer a ponte entre o Ocidente e o Oriente e contribuir para um maior equilíbrio da soci­edade actual.

VOLTA AO MUNDO EM DEZANOVE ANOS

índia começou a viajar após a Revolução do 25 de Abril. Nessa altura, mal sabia que iria correr mundo durante tanto tempo. O relato dos últimos dezanove anos em que, de imprevisto em impre­visto, acabou por dar a volta ao mundo, dariam para encher vá­rios livros e inspirar muita gente. Mas enquanto eles não existem, aqui fica uma breve descrição de uma maneira diferente de encarar a vida.

Aos vinte anos, foi para a Alemanha com a intenção de estudar, mas acabou por ficar a trabalhar em bares de estudantes durante dez meses. Depois veio a Portugal de férias e, enquanto estava no Algarve, resolveu res­ponder a um anúncio que pedia hospedeiras de bordo para a Royal Air Moroc.

Foi aceite e rapidamente se mudou para Casablanca, só que descobriram que usava lentes de contacto e, como tal, não poderia trabalhar em aviões. Deram-lhe um bilhete de volta, mas optou por ficar num hotel clandestinamente. Aproveitou para viajar por todo o país e conheceu um francês com quem acabaria por viver em Paris, durante dois anos. Foi uma época culturalmente muito rica. Mas o bichinho de viajante já se tinha instalado e resolveu procurar emprego numa das villages do Club Méditerranée. Como já conhecia Mar­rocos muito tem, mandaram-na para o Club de Marrakech por seis meses. Depois, foi colocada, por igual período de tempo, no Egipto, onde aproveitou para conhecer o país.

À boleia no Brasil

Mais tarde foi para Salvador da Bahia. Depois dos seis meses de trabalho, viajou um ano à boleia (todo o Nordeste, Amazónia, Mi­nas Gerais e Mato Grosso). Quando o dinheiro acabou, foi trabalhar para São Paulo em "relações públi­cas". Com a car­teira cheia, partiu outra vez à boleia e andou oito me­ses pela Bolívia, Peru, Chile e Ar­gentina. Voltou para Salvador e abriu uma dance-taria juntamente com mais três amigos do Club Méd.

Artesanato com os índios

Entretanto, foi a Porto Seguro com a intenção de tirar duas sema­nas de férias, mas ficou dois anos ausente. Andava muito a pé pelas praias dos arre­dores de Porto Seguro, que na altura quase não tinham turistas, e acabou por descobrir uma pequena aldeia de pescadores indígenas, onde comprou uma casa que, na época, lhe custou 85 dólares. Durante o ano que mo­rou nesta aldeia, viveu do ar­tesanato que fazia com os caboclos e índios da região e cuidava do seu jardim de abacaxis e bananas.

De vez em quando ia a Porto Seguro para comprar mantimen­tos e, numa dessas idas, soube
que um dos sócios da danceteria ia dar uma festa de despedida. Sem voltar a casa, para fechar a porta e arrumar algumas coisas, resolveu lá ir. Só que o destino, mais uma vez, a esperava: conhe­ceu um francês que precisava de tripulação para levar um barco até ao Rio de Janeiro e embarcou com ele, sem pensar duas vezes. Ao fazerem uma escala em Búzios, conheceu uma francesa dona de um restaurante e abando­nou o barco para ficar a trabalhar com ela durante um mês. A ideia era ganhar algum dinheiro para poder voltar para Porto Seguro.

Numa visita à marina do Rio de Janeiro acabou por visitar um veleiro que estava de partida para as Antilhas. Um tripulante a menos e índia já estava dentro do barco, pronta para viajar. Na altura, tinha 26 anos e achou que poderia ser a oportunidade para visitar o México.

A caminho das Antilhas

Acabou por sair na ilha de Barbados. Um dia roubaram-lhe as poucas economias que tinha e foi obrigada a fazer artesanato para vender aos turistas, até que embarcou num barco, que voltava para os EUA. Desembarcou na ilha de Santa Lúcia e trabalhou como cozinheira num veleiro de um alemão que ia dar a volta ao mundo.

Taiti à vista

Fizeram escala no Panamá, Galápagos e Taiti. Nesta pequena ilha tentou arranjar trabalho, porque não se deu muito bem com o comandante e ficou a tra­balhar num veleiro de charter, durante nove meses. Foi nesta altura que resolveu adoptar o nome de índia, mas não fez as alterações necessárias nos docu­mentos devido à excessiva buro­cracia.
De cargueiro para as ilhas Fiji Embarcou depois num carguei­ro para as ilhas Fiji, passando por Samoa e Tonga e um veleiro para a Austrália (Brisbane). Quando desembarcou tinha apenas cin­quenta dólares. Foi para sul — Surfers Paradise — e, ao fim de uma hora, já tinha arranjado traba­lho e alojamento próximo da praia.

No deserto da Austrália

Na Austrália, ganhava-se muito dinheiro e, ao fim de dois meses de trabalho, comprou um carro e começou a viajar pelo litoral, até algumas centenas de quilómetros depois de Adelaide. Só parava nas cidades para comer e dormia ao relento, nas reservas florestais. Era comum acordar com cangurus, raposas e outros animais à sua volta. Com a validade do visto a acabar, voltou para Sydney (pelo deserto) mas os últimos 400 quiló­metros teve de fazê-Ios à boleia, já que o carro pifou de vez. Como tinha de sair da Austrália, com­prou um bilhete de avião, em segunda mão, para a
Nova Zelândia (ilha do Sul).
Conta-nos que a natureza deste país é deslumbrante e pas­sava os dias a a:.tíar pelas monta­nhas. Caminhava uma média de seis ou sete horas por dia e dor­mia em cabanas próprias para via)antes. Ao fim de três meses, e á sem dinheiro, resolveu voltar para Sydney e trabalhar intensa­mente num restaurante (cerca de dezasseis horas por dia durante seis meses). O que ganhou per­mitiu-lhe ficar quatro anos sem trabalhar.

Comprou outro carro e, desta vez, subiu pela costa norte até Cairns, na altura uma autêntica cidade do fim do mundo. No caminho, ia parando nos albergues de juventude para oferecer boleias pagas, que davam para pagar a gasolina. Trabalhou num bar, perto de Cape Tribulation mas, ao fim de dois meses, voltou a Cairns para assistir a um concerto dos Dire Straits e acabou por embar­car num veleiro de um casal de franceses que ia para as Filipinas.

Mar de piratas

No caminho, foram persegui­dos por piratas por duas vezes. Em ambas as alturas tiveram sorte por ser de noite, tendo con­seguido despistá-los. Caso con­trário não teriam continuado via­gem. Diz que o esquema deles é violar as mulheres, matar toda a gente, roubar o que possam e afundar os barcos para não deixar vestígios. Nas Filipinas não con­seguiu entrar no Yacht Club, para arranjar outro barco, e acabou por ir de avião para Hong Kong.

O seu desejo era viajar para a China, que tinha acabado de abrir as suas fronteiras aos estrangeiros, só que era muito caro e havia que viajar em grupo com guia a acom­panhar. A alternativa era entrar como estudante e conseguiu arran­jar uma carteira de estudante na Formosa. Optou por ir para o Sudoeste, província de Yunnan, onde viviam os grupos étnicos mais pequenos, até chegar à fronteira com o Vietname e o Laos. Acabou por morar um mês com uma tribo que nunca tinha visto ocidentais. Depois desceu o rio Amarelo e voltou para Hong Kong.

Ao fim de cinco meses de China, foi para a Tailândia. Viajou pelo Norte e Nordeste e ficou a morar na ilha de Koh Phangan (Sul). Fazia Tai Chi Chuan, nada­va muito e começou a fazer medi­tação. Passados dois anos, resol­veu ir de férias à índia e percorreu o país todo em seis meses.

Tibetanos no Everest

Depois foi para o Nepal e, num trekking ao campo-base do Everest, conheceu os tibetanos pela primeira vez. Ficou com vontade de viver com eles mas já estava com pouco dinheiro e o visto também não dava para muito mais tempo. Voltou para a Tailândia e, passados cinco meses, já estava novamente no Nepal para fazer um curso de meditação com os tibetanos. Com o dinheiro novamente a acabar, resolveu ir para a Grécia vender artesanato, mas antes fez uma escala na índia para visitar Daramsala e tirar um curso de ioga.

Já na Grécia, vendeu artesana to nas ruas de Atenas, durante três semanas, e morou três meses na ilha de Paros. Depois, foi para a Alemanha vender artesanato e procurar emprego. Mas o traba­lho escasseava — o Muro de Berlim tinha acabado de ser der­rubado e havia excesso de mão--de-obra barata — e acabou por ir trabalhar para o Club Méd da Córsega. Voltou a Portugal pela primeira vez, ao fim de doze anos de viagens, mas não gostou. Os laços de família já não eram muito importantes e as suas refe­rências também tinham mudado. O chamamento do Ualai Lama era mais forte e foi morar para Daramsala, onde reside. Quanto à casa de Porto Seguro, não sabe o que lhe aconteceu. Talvez um dia volte lá.

H.M.

2 comentários:

Anónimo disse...

fiquei maravilhado com a história de parte da vida da India. mulher de coragem e muita determinaçao.
de salientar o trabalho da pessoa ( :) ) que postou a historia da India neste blog. acho que me tornei mais culto só de ler este blog! é de pessoas assim que o mundo precisa!
beijos

Anónimo disse...

Li há uns 10 anos (ou 15, nem sei) a história desta senhora, na Grande Reportagem, ou na K, já nem me lembro. Fiquei maravilhada então e fico mais ainda agora, por saber que ao fim de todo este tempo, ela não se abandonou. Boa viagem, para onde quer que vá! :)

ps: em 2007 só tinha 39 anos? não terá mais qualquer coisa?... ;)