quinta-feira, 7 de junho de 2007

A Descoberta da India I

Neste relato índia é o nome da protagonista, mulher viajante, eventualmente também o subcontinente conhecido pelo mesmo nome. Os caminhos da descoberta foram marítimos, terrestres e todos os mais que conduzem às alquímicas transformações da pessoa que viaja. Não é uma comemoração dos descobrim
entos, é um descobrimento.


Relato de índia de Sousa, recolhido por Isabel Barreno



"E uma mulher muito interessante, encontrei-a quando estive na índia", disse-me laconicamente a amiga que nos apresentou. Assim conheci a índia que a minha amiga conhecera na índia, desde logo intrigada pela coincidência de nomes.

Índia apareceu, calma e sorridente.

É esse o primeiro traço que nos surpreende, a naturalidade bem-humorada com que conta as suas viagens, como se contasse a ida ao café da esquina. O planeta inteiro não é para ela mais do que uma sucessão de passos tranquilos, de rostos e gestos humanos, em tudo índia descobre detalhes interessantes, signos de conhecimento. Ri-se com frequência, de si própria, das situações. Assim fez uma volta ao mundo vagarosa, numa viagem cujo sentido se foi revelando à medida dos percursos cumpridos.

Respeitando a regra do itinerário, nada mais revelarei neste prólogo, nem mesmo o segredo do seu nome, deixando as surpresas acontecerem na ordem da narração desta descobridora contemporânea.

Conversámos longas tardes, sempre sem pressas, em cada encontro surgiu com um pequeno presente, uma bolsinha, uma tisana de ervas raras, tesouros de convivência, aqui no Ocidente tão perdida:

MARENOSTRUM

Nada parecia fadá-la para aventuras extraordinárias, filha duma família lisboeta bem implantada no "como deve ser" da vida. Dessas raízes fala pouco; refere com um sorriso a apreensão e incompreensão dos seus familiares perante um percurso para eles Ião extravagante. Aliás é também esse o sentido do seu rebaptismo, do quase anonimato no novo nome que escolheu: não uma revolta, antes um crescer para além dos limites previsíveis e comuns, um renascer em circunstâncias criadas por ela própria.


Aventurou-se aos poucos. Primeiro apenas com as pequenas rebeldias e transgressões próprias da juventude. Foi nos anos 70. "Vi um anúncio no jornal, da Air Maroc. a pedir hospedeiras de bordo. Tinham começado uma linha Casablanca-Rio de Janeiro, precisavam de pessoal que falasse português. Foi assim que saí de Portugal, com duas amigas. Fomos para Casablanca. Na inspecção médica descobriram que usávamos lentes de contacto, não fomos aceites. Tínhamos de voltar, mas ficámos escondidas no hotel onde estavam as que tinham sido aceites. Dormíamos e comíamos clandestinamente, consegui ficar durante uns meses."

De Casablanca seguiu para Paris, tudo ainda dentro dos conformes da época. Ficou em casa de uma amiga, arranjou emprego no Club Mediterrannée como relações públicas. Acrescente-se que fala seis línguas. Parte para Marraquexe, para um dos hotéis do Club, e descobre com aflição que o seu trabalho incluía fazer espectáculos. "Eu, nessa altura, ainda era muito tímida. Normalmente eram 'playbacks', e o primeiro espectáculo de tive que fazer tinha aquele número da Lisa Minelli, do 'Cabaret'. Estava tão envergonhada que bebi uns bons whiskies para os nervos. As francesas têm todas um pé muito grande e no guarda-roupa não havia sapatos para mim. Tive de usar uns sapatos com um salto altíssimo, uns dois tamanhos acima do meu. Tínhamos que subir para as cadeiras, um pé ficava no assento e o outro no espaldar, e tínhamos que sacudir as ancas. Perdi o equilíbrio e caí da cadeira abaixo. Acabou por ser um número cómico de grande sucesso. E ajudou-me imenso a ganhar confiança e a perder a vergonha. Foi uma experiência muito boa."

Um pequeno incidente, apenas, não fora ir conjugar-se com discretas aspirações. Sempre gostou de conhecer mais intimamente os lugares, as pessoas. Findo o contrato e ganha a confiança, foi viajar pelo sul de Marrocos, sozinha pela primeira vez. Novo contrato com o Club Mediterranée, o Egipto, o museu do Cairo, nova excursão sozinha. Tudo ainda à volta do "mare nostrum", aventura comedida. Depois, o Brasil. Ainda com o Club. em Salvador da Bahia. Juntou dinheiro, no seu tempo de formiguinha, em Salvador. Foi até Maceió de camioneta, achou aborrecido. Entrava na camioneta, viajava com mais quarenta pessoas, mas passados 300 quilómetros não conhecia ninguém e não sabia nada dos lugares por onde tinha passado. Resolve viajar à boleia. Começa aqui o seu primeiro voo de longo curso. Deixo-lhe o fio da história, onde interferi o menos possível.

O NOVO MUNDO

"Todo o tipo de pessoas me dava boleia - caixeiros viajantes, camionistas. Às vezes entrava num carro ou numa camioneta e sentia que se não pusesse logo uma barreira ia haver problema. Então contava que era estudante, que não tinha dinheiro e estava de visita a familiares, no Brasil, para eles ficarem com a ideia de que alguém sabia onde é que eu estava. O facto de eu falar da minha família, e de os fazer falar da família deles, criava outra conexão.


Acho que foi isso que me salvou muitas vezes. Estas experiências deram-me confiança para acreditar que no fundo todos temos um bom coração, apesar de superficialmente sermos diferentes. A partir daí perdi qualquer receio de viajar pelo mundo. Passei por Recife, Fortaleza, S. Luís do Maranhão, até chegar a Belém, onde desagua o Amazonas; aí subi o rio de barco até Manaus. "De Manaus fui para o sul, para Mato Grosso. A estrada é de terra vermelha, e só dá para camiões. Dos dois lados é a selva. Selva mesmo, impenetrável.

"Os camionistas vão buscar madeira para trazer para o sul do Brasil. Debaixo do camião têm uma caixa com o fogão, o arroz e o feijão. À noite param, cozinham a comida e dormem dentro das cabines, porque ali não há nada durante centenas e centenas de quilómetros. Só pitons enormes, que atravessam a estrada, e às vezes não se vê bem onde começam e onde acabam, panteras negras, e uns macacos com umas cores incríveis.

"Ao princípio estava com um bocado de medo. As poucas aldeias que se encontram são igualzinhas àquelas aldeias do faroeste, dos filmes. As casas, todas de madeira, à frente têm uma varanda, onde amarram o cavalo. Andam todos de pistolas, à noite ouvem-se tiros, mas ninguém vai lá ver o que é. Demorámos duas semanas para fazer mil quilómetros, porque a chuva tropical abre buracos enormes na estrada de terra. "Há muitos acidentes, e há uma solidariedade incrível. Quando um camião capota ou fica atolado, os outros não saem dali enquanto não o puserem direito. Dependem todos uns dos outros, não há mais ninguém que possa ir lá ajudar. À noite, pendurava a minha rede entre duas árvores, e dormia... Com a rede é seguro, os bichos não chegam lá". Aqui permito-me uma intervenção, relembro-lhe as cobras, as panteras. Ri-se. "Nem pensava nisso. Era tudo tão forte, tão bonito. Uma noite pendurei a rede, estava escuro, adormeci.

No dia seguinte descobri que estava rodeada de árvores carregadas de frutos. Pode-se perfeitamente sobreviver, alimentando-nos só de fruta. Atravessei o Mato-Grosso assim. Quando chegámos à estrada alcatroada, comecei outra vez à boleia até Brasília, depois até Minas Gerais. Em Minas Gerais aconteceu uma coisa que nunca hei-de esquecer. Começou a chover, daquelas chuvas tropicais. Não dava para amarrar a minha rede entre duas árvores. Procurei uma pensão e pedi à dona para me fazer uma redução de preço. Ela recusou. Havia uma varanda na frente, e eu sentei-me ali, à espera que parasse de chover. Uma miúda que fazia a limpeza no hotel, devia ter uns 14 anos, tinha ouvido a conversa. Quando acabou o trabalho, chamou-me e levou-me para casa dela. A casa tinha paredes de cartão, chão de terra batida. Morava ela, a avó, que era uma velhinha, e um bebé. Deram-me a única cama que havia na casa. Eu não queria. Insistiram. Deram-me comida, foram comprar rebuçados para me oferecer e dormiram no chão. Fiquei muito comovida com tanta bondade. Foi uma experiência maravilhosa. Melhor do que se eu tivesse ficado no Sheraton." A viagem durou dez meses, acabou em S. Paulo, juntamente com o dinheiro.

A CELEBRAÇÃO DO SOL

"São Paulo é uma cidade muito poluída. Ninguém tem tempo para nada a não ser trabalhar e correr. Comecei a pensar no Peru, em Cuzco. Em Junho há o Solstício, era celebrado pêlos Inças e continua a haver essa tradição da celebração do Sol. Há um festival, com grupos folclóricos de todo o Peru e Bolívia. Saí de S. Paulo no princípio de Maio. Fui de comboio até à fronteira, e depois à boleia. A única maneira de andar à boleia na Bolívia e no Peru são os camiões, só que eles já levam passageiros, amigos ou família, e normalmente só há lugar em cima da cabine, numa espécie de caixa onde levam o pneu sobressalente. Pode-se ir sentado dentro da caixa, ou, quando está cheia, em cima da carga, geralmente arroz ou açúcar. Era confortável, mas muito frio, e chegava aos lugares com a cara negra da poeira da estrada. Atravessei a Bolívia, assisti ao festival e depois resolvi ir até Matchupichu. Pode-se ir de comboio, como fazem os turistas, ou a pé pelo caminho dos Inças. Em Cuzco, encontrei uma francesa e combinámos ir a pé. Nenhuma de nós tinha equipamento. Resolvemos levar batatas e ovos já cozidos, tomates, chocolate, queijo, e uns cobertores, amarrámos tudo com cordas para levar às costas. Começámos a subir e, ao fim do dia, parámos para dormir, só com os nossos cobertorzinhos. muito satisfeitas. Apareceram então uns franceses, alpinistas profissionais, que estavam ali perto. Ficaram loucos, disseram-nos que íamos morrer de frio. Emprestaram-nos sacos de dormir e fomos para as tendas deles.

Na manhã seguinte, quando abrimos a tenda, estava tudo coberto de gelo. Aparecem sempre as pessoas certas no lugar certo. Cada vez acredito mais nisso. Quando estou numa situação muito difícil, digo que não vale a pena enervar-me, e que vai aparecer uma solução.

"Nesse dia separámo-nos dos franceses, eles caminhavam mais depressa. A partir daí planeámos não subir tão alto para dormir. Comíamos o que tínhamos, que era pouquinho. No terceiro dia perdemo-nos, cheguei a pensar que íamos morrer. Ninguém sabia onde estávamos, ninguém nos viria procurar, se não voltássemos a encontrar o caminho era morte certa. Descobrimos um abrigo de pastores e nessa noite dormimos ali. No dia seguinte conseguimos chegar a Matchupichu. Havia uma greve de comboios, não havia ninguém, tínhamos Matchupichu só para nós. Indo a pé, chega-se de cima, é lindo. Há umas termas de água quente ali perto, tomámos um banho delicioso. Depois tivemos que voltar andando pela linha de caminho de ferro - ainda havia greve -, foi muito cansativo. Voltei a Cuzco e fui até Lima à boleia. No Peru e na Bolívia, à saída de cada aldeia há um controlo da Polícia; eu ia para lá, falava com o polícia, dizia que era estrangeira, ficava sentada dentro da casota e era ele que falava, por mim, com os camionistas. Dormia normalmente nos conventos. Todas as aldeias têm um convento, e as Madres nunca me deixaram ficar na rua. Aprendi muitas canções populares com as crianças que frequentavam as escolas conventuais. No Chile e na Argentina era mais difícil. Ia a uma igreja, falava com o padre, e ele normalmente arranjava alguém que me dava um lugar para dormir. Só em Valparaíso e Santiago, que são cidades grandes, fiquei em pensões. As cidades foram criadas para facilitar a comunicação, mas em todo o mundo são os lugares onde há mais falta de comunicação humana. Assim fui conhecendo pessoas interessantes e tive oportunidade de ver como viviam, o que comiam, como se relacionavam em família.

"As pessoas estão sempre tão dispostas a ajudarem e a darem comida! Hoje em dia sinto que tenho família no mundo inteiro." Repete a conclusão que já esboçara em Minas Gerais. "Foram sempre as pessoas mais humildes que mais me ajudaram. As poucas vezes que bati à porta de casas mais abastadas, fecharam-me a porta na cara." De Buenos Aires, onde tinha amigos, regressa a São Paulo. Fazemos uma pequena pausa nas viagens. Volto a algumas curiosidades insaciadas. Como é que uma ida ao Brasil, ainda tímida nos propósitos, se transformou numa viagem que já soma dois anos por esta altura dos acontecimentos? Toda esta capacidade de deambular sem preocupação de futuro nasceu como? Apenas das aventuras já relatadas? Confessa outros segredos inatos. "Nunca vi a vida em blocos: fazer o liceu, a faculdade, casar... Nunca me preocupei com segurança, poupar, planear. agendar datas. Se tivesse feito planos. nunca teria feito o que fiz. Gosto de desafios, de aventuras, do inesperado. Viajando sem prazos, nunca tenho pressa nem estou atrasada. Viajando sem destino, nunca me perco e estou sempre no lugar certo. "Claro que às vezes não ë tão simples assim. Mas o essencial é manter um espírito aberto e flexível. Mesmo que as pessoas façam planos, pode ser que não se concretizem. A única coisa cena na vida é a morte, o resto pode acontecer ou não; e como se gasta tanta energia a planear, depois há muita frustração, muita angústia e depressão. Quando a vida é improvisada, é mais fácil sentir alegria com coisas simples."


Em São Paulo falei com um amigo meu. de Salvador, que estava para abrir uma danceteria com dois sócios: queriam alguém que tivesse experiência de relações públicas. Um deles trabalhava na rádio, e fizemos tantos anúncios que quando abrimos o bar foi uma loucura. As pessoas saltaram os muros, entraram pela janela da casa de banho. Eu estava na porta a tentar controlar, mas a sala enchia-se cada vez mais. Aguentei uns quatro meses, mas não sou pessoa para viver de noite. Tinha que aturar os bêbados até às seis da manhã, resolver as chatices. Decidi tirar duas semanas de férias. Saí do «Singapura», levei uma escova de dentes, um par de shorts e duas t-shirts e fui passar quinze dias de férias a Porto Seguro.

"Porto Seguro é uma vila histórica, foi onde os portugueses desembarcaram. É muito bonito, com muitas esplanadas. Muitos jovens que não queriam morar na cidade tinham construído casas ali. Era um paraíso ainda por descobrir. Fiz amigos. A vida era fácil, dormia na rede entre os coqueiros, havia o mar. a água de coco. Levei dinheiro para duas semanas e fiquei nove meses sem problema nenhum: havia um ambiente muito comunitário, as pessoas ajudavam-se imenso.

Passados esses nove meses telefonei aos meus sócios. Tinham-me pago com cheques, eu não os levantei e. entretanto, eles tinham fechado o «Singapura» e gasto o dinheiro todo. Fiquei sem nada.

"Entretanto comecei a fazer caminhadas pela praia e descobri essa aldeia. 40 quilómetros a sul de Porto Seguro. que se chama Caraíva. Nessa altura, só tinha pescadores. Havia lá uma casa onde ninguém queria morar, porque anos atrás tinham morto aí muitos índios, parentes dos que ainda vivem numa reserva naquela área. e todos acreditavam que os espíritos dos assassinados ainda por lá andavam. Quando cheguei, deram-me a chave da casa e disseram-me que eu podia ficar.

"Havia um rio bastante largo e a casa ficava na margem do rio. A casa era de madeira, a parede que dava para o rio tinha desabado e o quarto só tinha telhado e três paredes, com vista panorâmica para o rio. Nas noites de lua cheia, o luar reflectia na água do rio e o quarto ficava todo a cintilar. Parecia que estava numa casa de sereias, ou de fadas, e ouvia o barulho da água. Às vezes tinha um certo medo dos espíritos. "Fui ficando. Ia pescar com os índios, comecei a manobrar as canoas, j Apareceu uma pessoa que queria ven der uma casinha, com terreno atrás, por 15 dólares e eu comprei. Pintei a casa. comecei a tomar conta do jardim e a plantar. Comecei a aprender artesanato com os índios. Eles trabalhavam com conchas, com bambu e com penas que coloriam, e eu fazia cortinas, brincos.

"Mesmo em frente de mim morava uma velhinha índia, com a cara toda engelhada, que me fez um cachimbo de noz de coco. Eu fumava cachimbo e achava que parecia «ma bruxinha. De três em três semanas ia a Porto Seguro fazer compras. Fazia os 40 quilómetros a pé.

Ao princípio, cheguei a ficar com os calcanhares em sansue. de roçar na areia. E dormia em Porto Seguro. Depois, já conseguia ir e voltar no mesmo dia, quando havia lua: ia numa maré bem cedinho, comprava as coisas e chegava de noite, com a lua...

"Até que uma dia cheguei a Porto Seguro - havia as festas da cidade. Uns amigos insistiram para eu ficar uns dias e, como tinha vontade de me divertir e dançar, fiquei. Telefonei aos meus ex-sócios do 'Singapura', e soube que um vinha para Portugal. Ia fazer uma festa de despedida e insistiu para que eu fosse. Deixei as compras em casa de uma amiga e fui para Salvador. Aí encontrei um francês que ia levar uma escuna para o Rio. para o barco ser reparado. Iam várias pessoas de Salvador e do Rio. e convidaram-me para ir. Eu já tinha velejado um bocadinho, em Porto Seguro. e tinha gostado muito. Pensei: já agora, em vez de ir de Salvador a Porto Seguro, que são mais ou menos 700 quilómetros, vou até ao Rio e apanho a camioneta para voltar para Porto Seguro. Fui no barco. Antes Je chegarmos ao Rio. parámos em Búzios. Ficámos umas três noites. Numa das noites fui a um restaurante: a dona precisava de ajuda imediata para servir e pagava bem. Comecei a pensar que. se trabalhasse um mês. podia voltar e comprar mais terreno, e então ficar a viver em Caraíva tranquila e por muito mais tempo. "Deixei o barco, fiquei. Enquanto lá estive, conheci um português que tinha comprado um barco pequeno. de 27 pés. e não sabia velejar. Metíamo-nos ao mar. fazíamos montes de asneiras, mas assim aprendemos os segredos da vela. Num fim-de-semana resolvi ir. finalmente, ao Rio. Vi um anúncio que pedia tripulação e senti curiosidade. Era um barco de madeira, sem motor. O dono era um sueco que estava a dar a volta ao mundo, ia passar pelas Antilhas e atravessar o Panamá. Ia com a namorada e um sul-africano. precisava de mais uma pessoa. Pensei que podia aproveitar a viagem para ir ao México. Os Maias, os Aztecas. as pirâmides, tudo isso me fascinava. Um ou dois meses, e depois voltava. "Resolvi ir. Parámos em Porto Seguro, mas nem perguntei pelas minhas compras: já devia estar tudo podre. E não deu tempo para ir à minha casa. Nunca mais lá voltei. Hoje já lá deve estar outra pessoa a morar. Nem fechei a porta à chave". Assim se despediu Índia duma época maravilhosa, duma casa encantada, Sem olhar para trás. Com um projecto de México que nunca aconteceu.


NAS ANTILHAS

"Parámos em Salvador. Recife. Fortaleza, depois fomos directos ate Barbados, nas Antilhas. Eu nesse tempo era muito exuberante, vinha do Brasil, e a namorada do sueco, também sueca, começou a ficar com ciumes. O ambiente tornou-se meio pesado. Em Barbados eu queria sair do barco. Mas para ser autorizada a desembarcar precisava de uma passagem de avião para o Brasil ou Portugal, ou do dinheiro equivalente num banco. Foram uns dias difíceis, em que aprendi que é mais fácil contornar a lei que enfrentá-la. Um dia, eu ia na rua e cruzei-me com um sujeito que tinha uma t-shirt em que estava escrito 'SE NÃO OS PODE CONVENCER. CONFUNDA-OS'. Pensei naquilo e achei a solução. Encontrei um barco que fazia cruzeiros naquelas ilhas e consegui convencê-los a levarem-me um fim-de-semana. Isso já deu à Polícia de Imigração a ideia de que eu ficaria a trabalhar com eles, e o dinheiro que ganhei deu para depositar no banco. Entretanto. descobri um albergue de juventude, numa casa enorme, do tempo dos ingleses, que também tinha um centro de ioga. Fiquei lá a fazer limpeza. Recomecei também a fazer ioga, que já tinha feito em Marrocos, e em breve comecei a dar aulas. Dava para viver lá, para comer, mas não tinha dinheiro. Resolvi começar a fazer pulseirinhas de macramê. E conheci também dois sujeitos que tinham um catamaran e que faziam viagens de um dia. Fui também trabalhar com eles. Levávamos as pessoas até outra baía, onde almoçavam, depois eles iam fazer ski ou mergulho, e eu saía com as minhas pulseirinhas de macramê: ia vendê-las para as portas dos restaurantes. Quando as pessoas acabam de comer ficam mais bem-dispostas, mais generosas. Vendia sempre duas ou três pulseirinhas. "Estive lá uns seis ou sete meses e fiquei com vontade de ver outros lugares. Quando passávamos em frente do Yatch Club, via se tinha chegado algum veleiro. Um dia chegou um. Contactei o dono, um americano. Ele e a mulher estavam sozinhos, já tinham sessenta e tal anos, e queriam alguém que tratasse das manobras. Não me pagavam, mas davam-me a comida e a passagem, íamos fazer um cruzeiro nas Antilhas, subir devagar, passando pelas Bermudas, até aos Estados Unidos. Eles moravam em Martha's Vineyard, disseram que podia ficar em casa deles até encontrar emprego: lá morava muita gente rica e famosa e «ria fácil arranjar trabalho de limpeza. Só que eles eram mesmo avarentos. Controlavam tudo, tudo. A comida era pouca. Quando chegámos à ilha de Santa Lúcia era a época do Natal. O casal americano foi passá-lo aos Estados Unidos com a família, e eu fiquei ali com o barco. "Um dia saio do barco, de manhã, para ir à casa de banho, que era em terra, e vejo em frente um 'Swan', que é um barco maravilhoso, o 'Rolls Royce' dos barcos. Sai um homem do 'Swan' e fica a olhar para mim. Convidou-me para irmos tomar um café, explicou-me que o barco pertencia a um milionário alemão. O barco ia dar a volta ao mundo, mas o alemão só viria de avião ter com o barco nos lugares que lhe interessavam e em que haveria cruzeiros. Pagavam quinhentos dólares por mês. para dar a volta ao mundo num barco daqueles. Pagavam-me, para viajar. Aceitei logo. Ele disse: 'Então fica combinado. O dono vai chegar daqui a uma semana, vamos dar uma volta aqui nas Antilhas, depois vamos para Curaçau, a seguir ele volta para a Europa, e nós vamos até o Tahiti. e ele volta outra vez...' E foi então que me perguntou: 'Então o que é que tu sabes cozinhar?' Fiquei sem fala. Não tinha percebido que ele queria uma cozinheira. Até aí só tinha cozinhado para mim, sem preocupações. Ele achou que se resolvia a questão. 'A cozinheira que se vai embora ainda fica uma semana - disse ele. Ela ensina-te'. Fomos até ao Panamá, passámos o canal, entrámos no Pacífico.



O Incrível Tahiti

"Acho que o capitão, o que me tinha contratado, pensou que íamos ter um caso, e quando descobriu que não. tudo foi piorando. Ele era um verdadeiro nazi. Apesar de tudo. sentia-me bem. ali no meio do mar. Ainda não consegui encontrar o meu limite, quer dizer, deve haver um limite, uma altura em que se quer chegar a terra, mas a viagem mais comprida que fiz sem ver terra durou um mês e poderia perfeitamente continuar. É um silêncio, mas não é um silêncio como no deserto, porque há sempre aquele barulho da água, há sempre um vento, uma energia tão antiga e que nunca se gasta... "Chegámos ao Tahiti. Pensei arranjar trabalho, mas era impossível. Tem que se ter um visto de trabalho. Então pensei ficar e ir contactando barcos. Mas não dava para sobreviver, mesmo pouco tempo. O Tahiti é o lugar mais caro que eu já vi em todo o mundo. Não produzem nada, tudo é importado. Têm muito turismo, é uma aldeia turística pegada.

“Escolhi Índia”

"Estava um bocado desanimada. Voltava para o barco a pensar na vida, quando saiu de outro barco um homem, que também vinha distraído, e chocámos um com o outro. Ele já
tinha reparado no 'Swan' - toda a gente reparava - e perguntou-me: 'Você trabalha naquele barco? Não está à procura de um emprego, pois não?' Respondi-lhe que sim. Ele disse que também estava à procura de alguém e convidou-me para ir a bordo beber um café. Mais um desses cafezinhos que foram mudando a minha vida!

"O barco dele era também de luxo, mas não tão bonito quanto o outro. Ele fazia charters. as pessoas chegavam de avião, já tinham reservado com antecedência, e nós levávamo-las a passear até Bora-Bora. Comecei logo a trabalhar com ele no dia seguinte. Como cozinheira, mas também disse que queria trabalhar no convés. Ele tinha uma namorada tahitiana e uma casa em Papeete. Quando o barco estava em Papeete, entre os charters. que duravam uma ou duas semanas, ele ficava em casa com a namorada. Durante bastante tempo, ancorou o barco em Huahine. para mim a ilha mais bonita do Tahiti. com uma baía maravilhosa dentro dos recifes. Estávamos ancorados a uma profundidade de 12 a 15 metros e via-se o fundo, a água era cor de esmeralda, e tínhamos o barco só para nós: eu e o resto da equipagem, um canadiano e um americano. Quando não tínhamos charters ele não nos pagava, mas dava-nos a comida e morávamos no barco. Tive sorte porque no primeiro charter foram dois casais de americanos. Os europeus quando vão de férias estão sempre a criticar, querem tudo perfeito, mas os americanos vão para se divertir, seja qual for a situação querem aproveitar o máximo, acham tudo divertidíssimo. Foi bom para começar, deram-me imensa coragem. Depois veio um casal de franceses, que são o oposto. Nada estava bom, a carne estava cozida demais ou cozida de menos, o tempo não estava bom. Mas nós os quatro dávamo-nos muito bem. Quando tivemos o barco em Huahine foi maravilhoso. Não há pessoas por ali, só fora dos recifes, e tínhamos um bote para ir a terra, com motor. Fazíamos ski de manhã à noite.

Estive no Tahiti oito ou nove meses. "Entretanto, o meu passaporte tinha acabado e no Tahiti não há consulado. Tive que mandar o passaporte para Portugal. Saíam muitos veleiros para a Austrália, mas eu não podia ir. "Os donos dum veleiro pequeno pediram-me para lhes guardar o barco enquanto estavam fora. Fiquei a morar aí, esperando o passaporte. E comecei a pensar que gostaria de mudar de nome. No decurso da viagem tinha mudado bastante, de certa maneira não era a mesma pessoa. Fiz uma lista de nomes de que gostava e finalmente escolhi índia: é bonito, recordava-me o Brasil, os índios com quem tinha vivido e pêlos quais sinto muito carinho por serem um povo oprimido, e era o nome dum país que não conhecia, mas onde imaginava encontrar pessoas como Gandhi, ascetas, ioguis e magia. Só há cerca de um ano me dei conta que o Tahiti está a meio caminho entre Caraíva e a índia, onde acabei por encontrar tudo o que imaginara." Mas até lá ainda nos faltam outros capítulos.


•Na segunda parte atravessaremos o resto do Pacífico, com piratas e alforrecas venenosas, passaremos pela Austrália e a Nova Zelândia, chegaremos, enfim ao continente asiático.

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