quinta-feira, 7 de junho de 2007

A Descoberta da India II - TEMPESTADES NO PACIFICO


Na postagem anterior se contava como índia, a mulher viajante, pouco a pouco se descobrira, à medida de suas viagens. Depois do Mediterrâneo, visitou a América do Sul, dai partiu para uma volta ao mundo. Deixámo-la no Tahiti, esperando novo passaporte, e decidindo mudar de nome, tão modificada se sentia depois do longo percurso. Aí a reencontramos, pronta a prosseguir a travessia de um oceano, Pacífico de seu nome mas com frequentes tempestades.


Relato de índia de Sousa, recolhido por Maria Isabel Barreno.


O passaporte chegou em Outubro, quando os ventos mudam e há perigo de ciclone naquela área.

Já não havia veleiros. Fui ao porto de navios de carga e tive sorte. No primeiro barco disseram que não, no segundo disseram-me que podia ir na enfermaria, que era enorme e raramente utilizavam. Pediram-me 25 dólares por dia, com refeições. Comia na messe dos oficiais.

Foi o primeiro con­tacto que tive com os filipinos: são pessoas impecáveis. Visitei o barco, aprendi a fazer navegação com o sextante.

Fui até Samoa, onde demorámos uns cinco dias. Chegámos a Samoa Ocidental, que é completamente americana. Depois atravessei num barquinho para Samoa Oriental, que é inde­pendente. Um lugar maravilhoso onde pouca gente vai, completa­mente preservado nessa época. Cheguei e logo no barco encontrei um que me convidou para casa dele. Depois resolvi fazer uma viagem pela ilha, de autocarro.

O clima é tropical, as casas são palhotas com as paredes feitas de folhas de coqueiro entrançadas, e têm um sistema como o das persi­anas. Durante o dia levantam as paredes das casas e à noite des­cem.

É um país pobre, mas há muita comida, é uma luxúria. Os mais velhos engordam imenso. Quando se passa, vêem-se mulheres velhas deitadas nas casas, com as paredes levantadas, a abanarem-se com os leques e a verem as pessoas passar. As pessoas convivem muito, vivem praticamente na rua e quando eu passava chamavam-me logo. Produzem imenso cacau, davam-me sempre chocolate quente, têm imen­so coco e peixe e cozinham maravi­lhosamente.

São muito católicos, ao domingo vestem as roupas melho­res e antes de irem para a igreja dei­xam a comida a cozinhar. Fazem um buraco no chão, põem pedras aquecidas no fogo e muitas folhas secas, e depois põem a comida, mais folhas, e cobrem com pedras quentes. Vão para a missa, quando voltam está tudo cozinhado e a comida fica deliciosa.

As regras da hospitalidade, ao princípio, faziam-me imensa confusão. Serviam-me numa folha de bananeira, as crianças mais pequeninas abanavam-me com leques enquanto eu comia, e ficavam todos a olhar para mim. Só comiam depois de eu ter acabado. Tinha imensa ver­gonha, sentia-me mal. Depois habituei-me. Ainda por cima ficam contentíssimos: quando eu comia na casa dum, no outro dia esse andava com um ar todo importante.

Uma vez ofereceram-me morcego. Eles comem uma das espécies de morcego que lá há, que só se alimenta de frutas. O morcego vinha inteiro, o foci­nho parecia uma carinha mirrada, não consegui comer...

Entretanto soube que havia um cargueiro que ia para Tonga. Tinha tido uma boa experiência com cargueiros, pensei que seria igual. Mas não foi, há muito trân­sito de passageiros entre Tonga e Samoa. Dormíamos todos no chão, onde encontrávamos lugar. A comida era péssima. Mas aque­las pessoas quando viajam levam instrumentos de música, canta­vam, dançavam, era uma festa.

A viagem durou três dias. Cheguei a Tonga, um lugar também muito bonito. Mas como vinha de Samoa, não me espantou tanto. Em Tonga há um rei. É uma família real de muitas gerações, e são todos enormes, medem dois metros, pesam uns duzentos ou tre­zentos quilos, o rei actual nem sei quanto pesa. São os únicos grandes, daquela zona, os povos do Pacífico são todos pequenos, mesmo em Tonga.

No Yacht Club perguntei se havia barcos. Havia um, de um casal de americanos que iam para Fidji. Combinei ir com eles, mas estava com um bocado de medo porque eram incompetentes. Tinham come­çado a fazer charters, traziam pes­soas dos Estados Unidos até Fidji, mas não tinham experiência e o barco não estava equipado para o mar. Era um barco de madeira, anti­go, muito bonito, uma relíquia. Desde que saímos até ao momento que chegámos a Fidji, o americano esteve enjoado o tempo todo. Praticamente fui eu que conduzi o barco.


De Fidji eu queria seguir para a Nova Zelândia, mas havia poucos veleiros. Com as viagens nos car­gueiros eu tinha recuperado algum do atraso que trazia desde o Tahiti, mas a maior parte dos barcos tam­bém já tinha saído daquela zona.

Descobri um único barco à procura de tripulação - ia para Brisbane. Eu só sabia que era na Austrália: naquela época tinha uma ideia vaga da Austrália. Fui falar com o comandante, um inglês muito com­petente, especialista no Capitão Cook, que já tinha sido conselheiro técnico de filmes históricos.

A tri­pulação tinha sido toda contratada ali, como eu: um polaco, um ameri­cano e um espanhol. Perguntámos se era preciso comprar comida e o capitão disse que não. Explicou-nos que o barco estava equipado como ele gostava, não tinha motor, mas tinha tudo o que era preciso.

Começámos a viagem e fomos então descobrindo que a navegação tinha que ser como no séc. XVIII. As velas tinham de ser descidas e içadas à mão. Nós os quatro fazía­mos as manobras e conduzíamos o barco. Havia uma vela triangular no cimo do mastro, não sei como se chama em português. Cada vez que se tinha de pôr ou tirar essa vela, um dos rapazes tinha de subir o mastro, estilo macaco.

O capitão cozinhava e fazia a nave­gação. A comida era sempre a mesma: ao pequeno-almoço, uma sopa com bolachas do tempo do Capitão Cook - se uma pessoa não as molhasse na sopa partia os dentes; à hora do almoço era sempre a mesma coisa, arroz e caril de car­neiro, daquele enlatado, horrível; à hora de jantar, unia sopa de pacote, outra vez com bolachas. Comemos isso todos os dias.

Ficávamos dois de cada vez a fazer quartos de qua­tro horas. Só havia dois abrigos contra a chuva e o frio, por isso os que tinham acabado o quarto tinham que despir os abrigos e dá-los aos que entravam. A meio da noite e às escuras, porque nem se podia acender a única lampadazinha de querosene que havia.

Às vezes havia tempestades, nem nos conseguíamos ver: era um despe casaco, veste casaco, na escuridão total. Mas o capitão dizia-nos: o bom marinheiro sabe sempre onde está tudo.

Era um barco de 12 metros, pesado, mas só tinha pau de leme, não tinha roda, as manobras custavam a fazer. Mesmo os rapa­zes, que eram fortes, no segundo dia de viagem estavam cheios de dores nos braços. Resolvi passar uma corda à volta do pau, ficava mais fácil porque desmultiplicava a força que eu tinha de fazer. Quando o capitão me apanhou a fazer isso, ficou furioso. Mas o pior foi quan­do nós descobrimos que a comida durou exactamente os quinze dias da viagem. Numa viagem daquelas, num barco sem motor! Tivemos um tempo óptimo, quer dizer, houve chuva e trovoadas, mas o vento foi perfeito, nunca mudou. Se tivésse­mos tido algum contratempo, era o fim.


UMA CHEGADA MEMORÁVEL


A nossa chegada à Austrália foi memorável, uma cena cómica que merecia ter sido filmada. Chega-se a Brisbane por um rio. Entrámos no rio e tínhamos a corrente em senti­do contrário e o vento também de frente. Portanto começámos a virar, mas de cada vez que íamos até uma margem encalhávamos no lodo; conseguíamos desencalhar, viráva­mos para o outro lado, encalháva­mos na outra margem.

Avançámos talvez um quilómetro em cinco horas. Finalmente a maré mudou, pelo menos a corrente já era favo­rável, e fomos avançando até um lugar onde havia vários barcos atra­cados. Tínhamos que declarar a nossa chegada;

O capitão saiu do barco. Quando voltou, disse-nos que ainda não era ali que podíamos atracar, que teríamos de subir o rio até ao ancoradouro em frente do Jardim Botânico e que tinha combi­nado com a Alfândega e a Polícia Marítima que estaríamos lá às cinco horas. Eram duas da tarde. Bom, desatracámos e continuámos a querer subir, só que o rio fazia muitas curvas, e começava a ter edifícios nas margens, que cobriam o vento, íamos muito bem um bocadinho, e de repente não havia mais vento; lá íamos outra vez, vol­távamos a parar. Isto era num fim-de-semana, passou um barquinho daqueles de plástico, mesmo pequenino, com um casal que tinha ido à pesca. Estávamos tão deses­perados que começámos a acenar para o barco e conseguimos con­vencê-los a rebocar-nos. O plástico do barquinho rangia e estalava, o dono achou que ia ficar sem barco e desistiu, mas avançámos uns metros, já deu para sair detrás daquele edifício, apanhámos outro ventinho, lá fomos mais um boca­do.

Devagarinho, chegámos a um lugar muito bonito, com um jardim enorme de ambos os lados, cheio de gente a passear. De repente, no meio do relvado, a uma velocidade incrível, com sereias e luzes, apare­ce a polícia. Já eram seis da tarde, e a polícia pensava que andávamos a fugir. Começaram a gritar nos alti­falantes: «Por favor, dirijam-se ao Jardim Botânico o mais depressa possível.» E o capitão, do lado de cá, tentava responder-lhes: "Eu sei, mas não há vento". Bom, lá conse­guimos dar mais uma curva, e de repente vimos o Jardim Botânico. Mas nessa altura o barco começou a ir para a margem. O polaco e o americano, que eram engraçadíssimos, resolvem saltar para terra com uma corda e começam os dois a andar pelo passeio fora a puxar o barco. E nós com as velas todas em cima a tentar apanhar o mínimo vento - foi um espectáculo. Juntou-se uma multidão.


Quando chegámos ao Jardim Botânico estava lá a polícia à nossa espera. Revistaram tudo. não encontraram nada, as coisas resolveram-se. Apanhei boleia do carro da polícia e fui para o centro da cidade.

O dinheiro que tinha junta­do dava-me para uma semana ou dez dias. Comprei um jornal, vi um anúncio de um apartamento, alu­guei. Logo a seguir arranjei um emprego: distribuir panfletos nas caixas do correio.

Brisbane é uma cidade agradável, mas não gostei do emprego; resolvi mudar para Surfers Paradíse, um lugar que fica 50 quilómetros ao sul. Cheguei de manhã e passado uma hora tinha emprego, passado três horas tinha um apartamento ao pé do mar. Era óptimo e trabalhava à tarde.

Depois comecei à procura de um emprego em que trabalhasse mais horas e ganhasse melhor. Fui aos restau­rantes e num deles precisavam duma empregada de mesa. Veio a responsável, perguntou-me se tinha experiência, eu disse que sim, e ela perguntou-me: "Quantos pratos é que você consegue levar?" Nunca na vida eu tinha servido à mesa. pelo que fiquei um bocado aflita. Tentei lembrar-me de quantos pra­tos costumam levar os empregados nos restaurantes, e disse "quatro". "Mostre-me como é que faz". disse, e deu-me quatro pratos para eu mostrar. Tenho boa memória visual, pus um prato aqui, outro ali. sobravam-me dois e não sabia ainda bem como é que ia fazer, quando ela disse: "Pronto já vi que sabe. amanhã começa a trabalhar".


"FUI VIAJAR"


Passados três meses fui viajar. Na Austrália, naquela época, o dinhei­ro que ganhava numa semana dava para comprar um carro em segunda mão. Mas da Austrália dos ociden­tais não gostei. E só no interior é que vi aborígenes. Eram um povo nómada, movimentavam-se muito, mas dentro do seu território tinham lugares sagrados. Os brancos tira­ram-lhe essas terras e deram-lhes reservas noutros lugares, só que para os aborígenes esses novos lugares não valem nada. Estão desenraizados, estão a ser destruí­dos por isso, bebem, bebem muitís­simo. Fizeram também uns bairros económicos para eles, e dão-lhes uma espécie de pensão, mas nada disto tem sentido para os aboríge­nes.


A Austrália é um país muito racis­ta. Só no fim, quando estive no norte, num lugar onde havia um albergue da juventude, conheci um branco que tinha contacto com os aborígenes. Era filho de ingleses, dono duma mercearia, tinha nasci­do ali há uns quarenta e tal anos,quando só havia aborígenes. Ele cresceu e foi à escola com os aborí­genes. Num passeio pela floresta. mostrou-me os frutos silvestres e os insectos com que eles se alimentavam: como faziam cabanas com certas cascas de árvores, e até como as mulheres deixavam uma certa espécie de formigas verdes na água várias dias e depois bebiam essa água como contraceptivo. Esse branco tinha tentado encontrar os seus antigos colegas de escola e descobriu que nenhum deles estava vivo.


Era uma zona muito remota, para onde só iam viver brancos que que­riam outro estilo de vida. Três anos antes de eu lá ter ido. o governo tinha feito uma estrada, e foi um desastre. Naquele tipo de floresta há quatro camadas de folhagem, que vão amortecendo as gotas, e no solo ainda há uma camada grossa de folhas mortas: é um sistema natural de defesa. Mas quando cor­tam e tiram toda a vegetação, a chuva leva a terra. Há enxurradas enormes, a terra vai toda para o mar, que está a 500 metros. Ali existe a maior barreira de coral do mundo, que está a ser destruída assim. As pessoas que lá moravam tinham tentado impedir a constru­ção da estrada: uns enterraram-se até ao pescoço nos sítios onde os buldozers iam passar, outros trepa­ram às árvores e só a polícia os tirou de lá, ma.-; não conseguiram nada. Ainda por cima a estrada, cheia de buracos, não serve para nada.

Fui pelo sul, ao longo da costa, até um pouco depois de Adelaide. Depois, para voltar para Sydney, cortei pelo interior. Na Austrália, a natureza é tão forte que onde acaba a cidade começa logo o mato. Há muitos parques nacionais. Comprava comida nas cidades e depois ia para o parque. Arranjava sempre uma maneira de esconder o carro, pois é proibido dormir nos parques. À noite punha o saco de dormir cá fora e dormia. Gostava de acordar no meio da noite com cangurus a saltarem perto de mini: cheguei a ter uma raposa a centí­metros da minha cabeça. Noutro parque, foram cavalos que me acor­daram. Os dingos é que são perigo­sos. Se estão com fome, atacam as pessoas. Há uma rede. de não sei quantos quilómetros, para não os deixar sair do interior, onde é tudo deserto. Mas é como os tubarões: de vez em quando há um buraco na rede e passam. Também atravessei a zona dos dingos. mas aí nunca dormia muito longe do carro. Na Austrália há cobras e aranhas vene­nosas, dingos. escorpiões, tubarões, crocodilos, bichos perigosos na terra e na água. Quem tem fobia de animais é melhor não ir lá.

Na Nova Zelândia, mesmo ali ao pé, só há um animal perigoso - uma aranha venenosa que vive nos pedaços de madeira que a maré traz, nas praias.

Uns quatrocentos quilómetros antes de chegar a Sydney, gripou o carro. Mas valeu os trezentos dólares que me custou. Tive que acabar a via­gem à boleia. Resolvi então ir até à Nova Zelândia. Cheguei a Christ Church, uma cidade muito bonita, na ilha do sul. A Nova Zelândia é um país super-tranquilo. Lá viajei muito à boleia, mas, sobretudo, andei a pé pelas trilhas das monta­nhas. Fiz 500 quilómetros a pé. Estava tudo muito organizado, com mapas que indicavam onde havia cabanas. As cabanas tinham lareira, camas, e ficavam sempre ao pé dum rio. Na Nova Zelândia não acontece quase nada: às dez da noite, mesmo na capital. Auckland, está tudo na cama. Por um lado é chato - muitos jovens vão para a Austrália -. mas por outro lado é um sossego, não há delinquência. Os agricultores vendem a fruta em tendas à beira da estrada: está lá o preço, uma caixinha para as pesso­as porem o dinheiro e uma balança. Nas bancas dos jornais não está ninguém, e as pessoas põem a gar­rafa do leite com o dinheiro dentro h porta da casa.

Voltei para a Austrália de avião, outra vez sem dinheiro. Arranjei emprego num restaurante, em Sydney. Morava ao pé da praia, e em vinte minutos estava no centro da cidade, de autocarro. No último mês em que lá estive trabalhava dezasseis horas por dia. É horrível quando se entra nesse ritmo, fica-se viciado. Decidi parar. Ir para o norte e tentar arranjar um veleiro para ir para a Ásia. Voltei para Surfers Paradise e arranjei emprego outra vez. Trabalhei dois meses e comprei um carro, branco, enorme. As primeiras vezes que saí devia ter um ar tão desesperadc para arrumar aquilo que as pessoas vinham perguntar-me se eu precisa­va de ajuda. Com o carro fui subin­do para norte. De vez em quando ficava nos albergues de juventude; perguntava se havia alguém que queria vir, dividia a gasolina. Cheguei a Cape Tribulation, o tal lugar de que falei, onde fizeram a estrada. E um sítio primordial, com árvores que já não há em mais lado nenhum há milhares de anos. Fiquei lá dois meses, a trabalhar num barzinho que funcionava com uma bateria de automóvel e fecha­va às dez da noite. Fui para Cairns e comecei à procura de um barco. Depois de várias hipóteses, apare­ceu um casal francês com dois filhos. Eram jovens e simpáticos, achei que eram as pessoas ideais para eu seguir viagem.

PIRATAS E RAPTORES

Rumámos às Filipinas. Era um barco antigo, todo em madeira, comprado na Nova Zelândia. Estava um bocado podre, mas decidimos não fazer arranjos por­que íamos passar numa zona onde havia piratas e quanto mais velho o barco estivesse menos atrairia a atenção. Fomos ao longo da costa, parámos em vários lugarzinhos. Num dos lugares encontrei um gatinho abandonado: resolvi levá-lo como mascote para bordo. Deixámos a Austrália, navegámos entre Papua-Nova Guiné e a Austrália, tentando evitar aproxi-marmo-nos de Papua-Nova Guiné porque era a época das chuvas e nessa altura os rios ficam muito caudalosos e arrastam as árvores das margens até ao mar. Apesar do nosso cuidado, uma noite batemos num tronco de árvore e fizemos um buraco na proa. Tentámos con­sertar por dentro, durante o dia. mas entrava muita água e tínhamos que dar muito à bomba. Já estáva­mos muito cansados. Ao fim do dia o capitão foi para o mar para tentar consertar do lado de fora. Quando ele estava a dar a última martelada, uma alforreca tocou-lhe no braço. As alforrecas daquela zona são mortais, têm um veneno que mata paralisando tudo - até o coração e o sistema respiratório. Ele saiu logo da água, mas o vene­no começou a actuar, com os mús­culos a ficarem sem força. Fomos tentando tudo - esfregamos com vinagre, com gasolina, tudo. Já lhe estava a custar respirar. Houve uma altura em que pensámos todos que ele ia morrer. Começou a dar instruções ao filho, para que tomasse conta da mãe, explicou-me o que é que eu tinha que fazer com o barco. De repente, lembrei-me de ir fazer-lhe um café bem forte. Não sei se foi por isso, ou porque a alforreca. felizmente, só lhe tinha tocado no pulso, o efeito do veneno parou, e depois come­çou a baixar. Durante uns quatro ou cinco dias ainda ficou meio tonto. Continuámos, estava ele a sentir-se melhor, quando tivemos uma tempestade enorme. Eu ia ao leme. quando vejo o gato cair ao mar. Comecei a gritar peio capitão - que não gostava nada do gato. Ele disse "quero lá saber do gato", mas depois teve remorsos. Tivemos que dar a volta, puxar as velas todas para dentro, ligar o motor, ainda demorou um bocado. Mas o capitão era muito competen­te e conseguimos encontrar um gato cinzento, num mar cinzento, com céu cinzento e ondas altíssi­mas. Saltei para o mar e trouxe-o para bordo. O capitão deu-lhe res­piração boca a boca, se não fosse isso o gato não tinha escapado, ainda ficou durante quatro ou cinco dias cheio de febre e com a barriga inchadíssima. Nas Filipinas, por causa do vento e da corrente, tivemos que passar bas­tante perto da ilha de Mindanau. É uma ilha de influência muçulmana, que quer a independência, e onde há mais pirataria. Passámos ali com muita atenção. Por duas vezes, de noite, vi uma luz que vinha na nossa direcção. Podiam ser pescadores, só que ali há mui­tos pescadores que são meio pira­tas. São ainda mais perigosos do que os piratas profissionais porque, como não querem testemunhas, matam. Chamei o capitão, apagá­mos as luzes todas e mudámos imediatamente de rumo. Das duas vezes conseguimos fugir, mas foi uma situação um bocado tensa, porque se nos apanhassem era morte certa. O capitão e a família ficaram numa das ilhas Filipinas -iam fazer consertos no barco. Deixei-os e fui visitar as outras ilhas. As pessoas eram hospitalei­ras: em seis meses fiquei apenas duas noites num hotel, e porque quis. Há muitas casas de madeira, e os filipinos adoram ter casas nas árvores, é engraçadíssimo. Fiquei numa casa dessas e, à noite, ficava toda iluminada, com milhões e milhões de pirilampos. Nas Filipinas falam-se uns quaren­ta e tal dialectos. Uns são mais fáceis, porque têm muitas palavras espanholas. Também há muita influência americana. Para eles. o mundo divide-se em duas partes: as Filipinas e a América, que é todo o resto do mundo. Todos os brancos são "Joe". Na rua. quando me chamavam, diziam "hey. Joe".


Tentei explicar onde era Portugal, mostrei um mapa, foi o mesmo que nada. No final da explicação, per­guntaram-me se Lisboa era mais longe que Chicago. Fui a Mindanau. essa tal ijha que quer a independência. Pouco tempo antes tinham raptado um turista suíço e o governo desacon­selhava os turistas a irem lá. Mas. claro, resolvi ir. Numa das zonas da ilha. considerada a mais perigo­sa, tinham acabado de raptar um padre e uma freira, também estran­geiros. O movimento de indepen­dência quer conseguir assim reco­nhecimento e publicidade. Mas como os filipinos são muito hospi­taleiros, tratam muito bem os rap­tados. Disseram-me, ou li, que os raptores até perguntavam à freira e ao padre o que é que eles queriam comer, do que é que gostavam.Eu queria visitar todas as zonas da ilha, mas na família em casa de quem eu estava havia uma velhota que me pediu de joelhos que não fosse a essa zona. "Não vá, porque a vão raptar". Eu tentei explicar à velhota que não me importava nada que me raptassem porqi'e ia ser bem tratada e comer e dormir de graça, mas ela até chorou e eu desisti de ir.


NA CHINA

Das Filipinas decidi ir para Hong-Kong, mas não consegui passagem de barco. Fui de avião e foi um choque enorme, sem transição, depois daquele tempo todo a vele­jar. Fiquei dois dias e resolvi ir para Macau. Estive lá uma semana e gostei muito. Macau tem restau­rantes portugueses, comi bacalhau; ainda é muito português, as ruazi­nhas, as casas estilo colonial, ape­sar de praticamente ninguém falar português, a não ser nos serviços do governo ou na televisão e rádio. Voltei para Hong-Kong, já mais preparada. Entretanto tinha encon­trado várias pessoas que tinham ido à China e me deram várias informações. Para turistas era muito caro. mas com um cartão de estudante saía barato - podia ser um cartão de Taiwan. dado que os chineses acham que Taiwan é China. Nessa altura havia um mercado negro de cartões de estudante, em Hong-Kong. As pessoas que voltavam da China e não precisa­vam mais dos cartões vendiam-nos ou davam-nos. Havia casos engra-çadíssimos de mulheres a viajarem com fotografias de homens barbu­dos, e homens barbudos a viajarem com fotografias de mulheres, e os chineses não notavam nada. por­que nós para eles somos todos iguais, como eles são todos iguais para nós. Arranjei um cartão e fui para Cantão. Fiquei impressiona-díssima com um mercado, enorme. Os chineses comem macacos, e no mercado estão pendurados patos, galinhas, e macacos. Esfolados, em posição fetal, é horrível. Os únicos hotéis que havia na China, nessa altura, eram do governo e os funci­onários não estavam nada motiva­dos para trabalhar, não ganhavam mais por isso. Mesmo que o hotel i estivesse vazio, diziam que não • havia quartos. Sentava-me um bocado, e depois perguntava outra vez, esperando que eles estivessem com mais energia. Mas era cansati­vo, não havia alegria, por isso, em vez de ir para Pequim ou para Xangai, fui para oeste, para a zona mais perto das fronteiras com Burma e com Laos. É uma zona menos chinesa, com etnias diferen- . tes, no passado foram povos inde- j pendentes. Aí já havia outro ambi­ente, muito mais alegre. Depois fui mais para o sul e cheguei mesmo à fronteira. As pessoas eram muilo diferentes, vestiam-se com cores garridas e com trajes tradicionais, em vez daquele eterno azul escuro e verde escuro dos chineses. Havia uma cidadezinha que tinha sido aberta a estrangeiros uma semana antes. Encont rei lá uma pintora inglesa. Ao domingo havia um mercado, cada tribo vinha trocar os seus produtos e ao fim do dia vol­tava para a sua aldeia. A pintora ficou interessada nos trajes das mulheres duma das tribos, queria fazer uns desenhos. Eu também achei lindos os casacos delas, quis comprar um, mas quando tentava explicar-me por gestos elas não entendiam e tinham medo. Resolvemos seguir essas mulheres até às montanhas. Foi uma experi­ência única: fomos as primeiras ocidentais a aparecer por ali. Viram-nos ao longe, e quando che­gámos a aldeia estava vazia. Fugiu toda a gente. Sentámo-nos, a ingle­sa começou a desenhar, até que começaram a aparecer umas cabe-cinhas atrás dumas árvores. Depois foram-se aproximando, aproxi­mando... Passado uma hora quase não tínhamos espaço para respirar, estava a aldeia inteira a centíme­tros de nós, todos, e não falavam, só olhavam. Depois houve alguém que começou a tentar falar-nos no dialecto deles e acabaram por nos levar para casa de uma das famíli­as. As casas eram quase todas em cima de estacas. Dormimos nessa casa. Só tinha uma divisão, muito grande, e no meio tinham uma fogueira, para cozinhar. Era o marido que cozinhava. Foi difícil dormir por causa dos ratos, que corriam e passavam por cima de nós. Nem vi o tamanho dos ratos, preferi não abrir os olhos. Mexia-me muito, para eles sentirem que estava ali alguém. Ficámos um dia ou dois, depois fomos para outra aldeia, passámos assim duas sema­nas.


Depois subi até uma cidade de cujo nome não me lembro, apanhei um barco e desci o Rio Amarelo até metade do percurso. Uma coisa que é difícil de suportar na China é a propaganda política. Na área onde estive, havia altifalantes em todas as aldeias, vilas e cidades. Em esquinas, bem altos, geralmen­te bem peno do hotel onde eu esta­va a dormir. Já não podia com aquilo. Não imagina as fantasias que eu tinha para calar aqueles alti­falantes, tesouras, bpmbas, espin­gardas, tudo. Entrei no barco para descer o Rio Amarelo... Não pare­cia mau. Ia num camarote com uma canadiana e um casal de chi­neses rechonchudinhos. Fomos dormir e no dia seguinte, à seis da manhã começa a propaganda. Havia altifalantes à volta do barco e, por azar, um mesmo em frente do nosso camarote. Finalmente fiz o que tinha sonhado: nessa noite deitei-me, por volta da meia noite acordei, levantei-me, e com o meu canivete cortei os fios. Fiquei feliz, e ninguém deu por nada, eles tam­bém já não ligam àquilo. Saí do barco e voltei de comboio para Cantão. Os comboios chine­ses são piores que os indianos. Os indianos pelo menos têm barras nas janelas, mas na China não. e as pessoas entram e saem pelas jane­las. Às vezes entrava em pânico a pensar que não conseguiria sair onde queria. Nunca aconteceu, mas atirei-me pela janela várias vezes. E ninguém fala inglês, e têm noções de gestos, de mímica, com-pletamente diferentes da nossa. Tirando a estadia nas montanhas fiquei sempre em hoteizinhos. em dormitórios, porque na China um quarto particular é caríssimo. Dormitórios de oito ou dez pesso­as, às vezes mais. Era horrível por­que os chineses dormem de luz acesa, batem com as portas e têm um hábito horroroso: a partir das quatro da manhã, começam a lim­par a garganta, a toillete deles começa por isso. E só havia água quente das sete às nove da noite. Os duches são compartimentos sem porta. Eu ficava à porta da casa de banho das mulheres, à espera que as chinesas acabassem, e elas achavam esquisitíssimo eu querer estar sozinha. Juntavam-se às três e quatro no mesmo duche e demoravam imenso tempo a esfre­gar-se; acho que se lavam uma vez por mês. Também achavam esqui­sito eu ficar cinco minutos no duche. E as retretes são um cubícu­lo com um buraco. Cai tudo num poço, as pessoas vêm com uns bal­des e levam para servir de estrume nos campos. E também não há porta: os chineses não têm noção de privacidade. Às vezes eu estava num cubículo, viam uma estrangei­ra e ficavam pasmadas a olhar, sem cerimónia nenhuma. Eu saía dali o mais depressa que podia.


Quando voltei a Hong-Kong pare­cia que estava a voltar doutro planeta. •


A seguir, enfim a índia. Mas antes disso, ainda milhares de quilómetros a pé e outros sustos. Até à descoberta do "oceano de sabedoria ".

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