quinta-feira, 7 de junho de 2007

A Descoberta da India III - ATÉ AO OUTRO OCEANO


No relato anterior vimo-la terminando a travessia do Pacífico, depois de já ter resolvido mudar de nome, explorando a Austrália e a Nova Zelândia, entrando na China em busca das suas regiões mais recônditas. Finalmente chegamos à descoberta da índia pela índia: um horizonte incerto, um nome escolhido por diversas razões, revelam-se afinal proféticas designações do lugar onde viria a descobrir o desejo do seu coração.


Depoimento de Índia de Sousa recolhido por Maria Isabel Barreno.


Iniciada no nosso número de Junho, termina agora a viagem de índia, uma mulher que deu a volta ao mundo sozinha, gastando nessa aventura quase década e meia. Vimos como pouco a pouco a sua viagem se foi transformando numa experiência profunda, numa apren­dizagem sobre si própria e sobre o mundo: começou viajando perto, no norte de África e Europa; seguiu-se a volta à América do Sul, que lhe deu coragem e determinação para novos voos. Desistiu de projectos e seguiu o destino indicado pelas cir­cunstâncias. As cronologias apaga­ram-se, o tempo tornou-se questão meramente meteorológica. "Fui para a Tailândia de avião. Ainda tinha algum dinheiro do que juntara na Austrália. Banguecoque é uma cidade muito poluída e baru­lhenta. De Banguecoque segui para Surathani, e visitei as montanhas do norte à boleia. Gostei do rio Mekong. Visitei também o Triângulo de Ouro. onde se produz muito ópio e heroína. Era fácil arranjar boleia, mas estavam sem­pre a oferecer-me coca-colas. quan­do parávamos nas estações de servi­ço. Eu odeio coca-cola. mas aceita­va para não ser indelicada. Depois resolvi ir descansar para uma das ilhas no sudoeste, de que me tinham falado.

Há um barco, tipo cacilheiro. que faz a carreira. às vezes é perigoso, porque os barcos vão super carregados. com pessoas, com mercadorias, especialmente cocos. Enquanto eu lá estive, houve um barco que nau­fragou: ia muito carregado, apanhou uma daquelas tempestades que ali são frequentes. O pior, é que há muitos tubarões. Cheguei à ilha principal. Koh Samui, e não gostei. Era muito turístico para o meu gosto. Tinham-me falado duma outra ilha. a norte, Koh Phangan, mais bonita e com menos turismo. E nessa ilha tinham-me indicado uma praia, ao norte. Desembarquei, e fui para essa praia, de camioneta.

MEDITAR É DIFÍCIL


Era uma praia lindíssima, daquelas praias tropicais que só se vêem nos calendários, com uma água azul-turquesa, transparente, e com uma areia tão fina e tão branca como eu nunca vi. Na própria praia havia umas cabanas para alugar, naquele tempo seriam umas dez. Logo que vi as cabanas, escolhi uma; pensei "aquela é que eu queria". Estava muito velha, com o telhado torto. Vim a saber depois que foi a pri­meira cabana a ser construída na praia, por isso estava ali bem em frente ao mar. Assim decaída ninguém a quisera alugar, estava vaga, e eu fiquei com ela. Contentíssima. A renda era muito barata, cerca de 100$00 por dia. Era tudo baratíssi­mo. Durante todos os meses que lá vivi nunca fechei a porta da cabana: tinha sempre o mar bem ali à minha frente, noite e dia. Pus uma rede na varanda, dormia aí, enfeitei a varan­da com móbiles de conchas que apanhei. Não tinha medo dos tuba­rões, só havia mais longe. A praia fazia uma enseada, com uma água muito transparente, via-se o fundo, e os tubarões não vinham para ali. Um dia em que eu tinha ido nadar, quando voltei encontrei uma equipa a fazer fotografias mesmo em frente da minha casa. Eram dessas foto­grafias que se fazem para calendári­os, com umas beldades muito des­pidas, e em Ioda a praia eles tinham escolhido como fundo para as foto­grafias a minha varanda, com a rede. com as conchas penduradas. Fiquei ali oito ou nove meses. Havia, num dos extremos da praia, um americano que tinha alugado um terreno por dez anos. Cultivava esse terreno e ensinava tai-chi. Resolvi inscrever-me nos cursos dele. E perto havia também um mosteiro onde havia cursos de meditação, de dez dias. Fiz também vários desses cursos. Não eram cur­sos progressivos, com uni nível ou grau mais elevado a seguir ao outro. A pessoa ia repetindo para ir melhorando e aperfeiçoando a capacidade de meditar. Havia tam­bém meditação com tema. o que eles chamam meditação analítica: fixamo-nos numa frase, num mantra. e tentamos reflectir sobre isso. Mas insistia-se mais no outro tipo de meditação, o que consiste em esvaziar a mente, parar com a cor­rente associativa de ideias, fixando a atenção apenas na respiração. De qualquer maneira, esta meditação é a melhor para se começar, porque se aprende assim a controlar a mente, a não a deixar vaguear, e depois já se é então capaz de fazer a meditação com tema. Meditar é muito difícil, ao princípio, concen­tra-se a atenção na respiração durante uns minutos e depois a atenção distrai-se, ficamos durante meia hora, uma hora, ou mais tempo, a pensar nas coisas mais variadas, até darmos por isso, e depois volta-se a concentrar a aten­ção na respiração, até nova distrac­ção... Ao princípio, há muito pouco tempo de concentração, e muito de distracção. Pouco a pouco os tem­pos de distracção tornam-se mais curtos: vagueamos mentalmente durante vinte, dez minutos, damos por isso, voltamos à respiração... É lento e difícil. Mas só quando se consegue esse silêncio interior é que a mente se abre para outras coi­sas: só depois do esvaziamento é possível n aprendizagem de coisas novas, sobre nós mesmos e sobre o exterior, coisas que não estão ligadas ao que sabíamos até então.

A certa altura, resolvi ir à Indonésia. Isto foi ha' uns quatro ou cinco anos, as relações com Portugal já estavam tensas, embora não como agora. Não me lembrei desse problema. Fui a Penang. A cidade era perto, era só fazer a tra­vessia de barco, ia lá de três em três meses renovar o visto. Já depois de ter a passagem alguém me disse que os portugueses deviam precisar de visto para a Indonésia, por causa da questão de Timor. Fui ao consu­lado indonésio em Penang, era scxta-feira, disseram-me que não havia problema, que na segunda de manhã o visto estaria pronto. Perguntei se tinham a certeza, dis­seram-me que sim. Segunda feira de manhã cheguei a Penang. Tinha a viagem marcada e paga, para essa tarde, de Penang para Sumatra - é uma curta travessia de barco. Fui ao consulado, disseram-me que afinal o visto só podia ser passado pela embaixada, que era em Singapura. Tomei a camioneta para Singapura, foi uma viagem de doze horas, durante a noite, infernal. A^ Malásia é dos países mais ricos da Ásia, tem boas estradas, c os autocarros são daqueles modernos, com vídeo. De modo que a ideia deles de luxo, é essa: a noite inteira com o vídeo aos berros, e o ar condicionado ligado do tal modo que fazia um frio de rachar.

Cheguei a Singapura, fui à embai­xada indonésia c disseram-me que não davam vistos a portugueses. Era a questão de Timor, mas não sei se era só isso. Para o Sri Lanka também só os portugueses, e os singapurenses. precisam de visto. Parece-me que os portugueses estão malvistos por ali. Serão só questões diplomáticas? Talvez seja a nossa diplomacia que é pouco eficaz. Tive que voltar para trás. Acabei por conseguir que a agência me devolvesse o dinheiro da passagem, mas foi difícil. E voltei para a ilha. para a minha cabana. Entretanto aquela praia começava a ter mais gente, construíam mais cabanas, já se notava a diferença. E quando fui à índia e voltei, passados alguns meses, então a diferença era brutal. Havia mais umas duzentas cabanas. E a minha já fora demolida. Era assim: deitavam um coqueiro abai­xo, faziam uma cabana. De modo que havia menos duzentos coquei­ros e mais duzentas cabanas. Agora nem sei como estará.


NA ÍNDIA


Depois de algum tempo na ilha, resolvi ir à índia. A índia é um país complicado, é difícil lá estar. Uma civilização muito antiga, completamente decadente, e que agora tenta absorver os valores do Ocidente e tornar-se numa potência mundial. A pobreza é aflitiva. Cheguei a Calcutá na altura dum festival e havia milhões de pessoas. O mais difícil na índia é conseguir informa­ções correctas e sobreviver aos ata­ques dos que querem convencer-nos a deixar o nosso dinheiro nas mãos deles. Apesar de já ter viajado tanto, fiquei chocada com as multi­dões e a pobreza da índia. De Calcutá segui para Caxemira. Fui de comboio. Os comboios indianos são uma experiência única. São a carvão, ainda são do tempo da colo­nização inglesa. Andam devagar, c ao fim de umas horas de viagem a pessoa está coberta de pó preto. Os comboios vão cheios, apinhados. Num compartimento onde deveriam ir seis pessoas, vão oito ou dez. Há couchettes, e eu reservava couchettes quando as viagens eram compri­das, mas também aí nada é garanti­do: se eu me encolhia, a dormir, e ficasse durante algum tempo enro­lada na posição fetal, quando tenta­va voltar a esticar-me já tinha outra pessoa enfiada na minha couchette enrolada no espaço que eu deixara livre. E há um barulho horrível porque a índia é o país do barulho, há sempre rádios aos berros O calor é insuportável, e cheira mal. E o comboio pára em todas as estaçõ­es, durante muito tempo, há uma multidão de vendedores em cada estação, vendendo tudo o que se possa imaginar, as pessoas saem do comboio, é como ir a um mercado. Nunca vi país onde se vendesse tanta coisa, em todo o lado. como na índia. Ao norte predominam os muçulmanos, e são insuportáveis. Fui seguida e abordada na rua. o género de coisas que aqui no Ocidente só se fazia nos anos cin­quenta. No género de vir um atrás de mim, eu parar para o fazer pas­sar à minha frente e ele parar adian­te com truques tão primários como pôr-se a atar o sapato ou deixar cair o lenço. E os apalpões, no meio da confusão. No sul também há este género de coisas, mas no norte, com os muçulmanos, é pior. Sentava-me num sítio, vinha logo um a querer meter conversa. No comboio era a mesma coisa, tenta­vam sempre meter conversa. Nem sempre é com segundas intenções, eles têm uma grande curiosidade em relação ao Ocidente, querem comunicar. Mas sabem pouco inglês, aprendem meia dúzia de fra­ses na escola. Como é que se chama? Qual é o seu país? Que idade tem? Não se passa disto. De modo que a conversa é sempre a mesma, e pouco interessante.
De Caxemira segui para Delhi, Rajasthan, Gujarat (Diu), Bombaim, Goa, Kerala, Tamil Nadu, Madrasta, Benares, e por fim o Nepal.Fiquei sempre em hotéis, ou então em ashrams. que são santuários onde se pode ficar. Têm quartos, e a comida é muito barata. Participa-se no trabalho colectivo. As pessoas são hospitaleiras, e vári­as vezes me convidaram para casa delas, mas só aceitei alguns convi­tes para jantar. São as mulheres que convidam sempre, mesmo quando eu fazia amizade com uma família, no comboio, por exemplo, era a mulher que convidava. A casa é o território delas. Para dormir não. é impossível dormir numa casa india­na. Dormem de luz acesa e com o rádio aos berros. E não fazem como nós, que nos deitamos para dormir de seguida até de manhã. Dormem aos bocados. Dormem, depois levantam-se e vão fazer um chá. e ficam a conversar um bocado, depois voltam a adormecer, passam a noite assim. Não sei como conse­guem descansar, estão habituados. Uma vez estive numa casa, à noite, havia várias pessoas a conversar, o rádio aos berros, e um tranquila­mente deitado a dormir - ressonava, até - tudo na mesma sala. Habituam-se assim desde pequenos. Nunca mais me esqueço da cena que vi numa rua de Benares. Uma pedinte, leprosa, sentada no pas­seio. A frente dela, numa esteira, estava um bebé. Bem junto ao ouvi­do do bebé estava um rádio aos ber­ros, e o bebé dormia profundamen­te. Esta cena resume bem a índia.


APRENDIZAGEM DE PACIÊNCIA


Na índia só andei de comboio c camioneta, andar à boleia pareceu-me arriscado. Andar de camioneta é também uma experiência pesada, na índia. E um treino de paciência. As camionetas são velhas, a cair aos pedaços, as estradas são más. cheias de buracos. As camionetas não cumprem os horários, chegam sem­pre atrasadas, ate porque as proba­bilidades de terem um percalço, uma avaria, são enormes. Se a pes­soa apanha uma camioneta para ir até um lugar onde tem que apanhar outro transporte, é uma guerra de nervos. Aos poucos fui aprendendo. Hoje em dia. quando estou na índia e tenho de ir para qualquer sítio com data marcada, vou com três dias de antecedência. É a margem necessária para todos os imprevis­tos possíveis, e assim posso viajar tranquilamente, caso contrário dava em doida. Outro problema é o das informações falsas, como já disse. Por exemplo, eu chegava de camio­neta a uma terra, para apanhar outra camioneta c seguir viagem. Perguntava se havia camioneta para o sítio para onde eu queria ir. c a que horas passava. Diziam-me que sim. e a camioneta não aparecia. Todas as explicações eram possí­veis: a camioneta estava atrasada e iria aparecer horas depois: ou tinha avariado e só viria no dia seguinte: ou não havia camioneta c tinham-me dado uma informação falsa. Os indianos mentem constantemente: porque lhes convém, ou às vezes nem isso. dizem o que lhes passa pela cabeça. E mentem, e a gente diz-lhes "está a mentir", e eles con­cordam que estavam a mentir e inventam outra mentira. Eu sou uma pessoa que gosto de improvi­sar, gosto de seguir viagem ao sabor das circunstâncias, nunca me interessei em ter informações e guias turísticos. Mas. na índia, isto é uma coisa que eu digo a toda a gente, é impossível viajar sem ter um bom guia. com informação sobre transportes, preços, horários, hotéis, tudo. Quer dizer, impossível não é. mas é de dar em doido, e é-se explorado. E há esse tal problema de não se conseguir estar sozinha na índia. Eu gosto da solidão, preci­so pelo menos de algum tempo para estar só. Para começar, eles são muitos, são milhões, está sempre tudo apinhado de gente. Depois, os indianos não concebem que uma pessoa goste de estar sozinha, muito particularmente os homens indianos não concebem que uma mulher goste de estar sozinha. Fosse onde fosse, aparecia um com as perguntas da praxe, a meia dúzia de frases que sabem dizer em inglês. Uma pessoa manda-os embora, e eles não vão. Eu não sou agressiva, nem violenta, mas na índia comecei a resolver estas coi­sas com um estalo. É a única maneira, só assim é que entendem. Ao princípio, era bem educada, dizia delicadamente "eu quero estar sozinha". Eles não acreditavam, achavam que era uma manobra de coqueteria. Eu irritava-me, insistia que queria estar sozinha, mandava-os embora. Eles continuavam a não acreditar, continuavam a achar que eu estava a dizer aquilo só para me fazer interessante. Só ao estalo. Assim entendem. Apanham o esta­lo, aí desistem, vão-se embora, não são violentos. De modo que para se estar sozinha c tranquila só se uma pessoa se esconder no meio do mato. Nunca pensei que viria a viver na índia. Bom. não vivo bem na índia, vivo na comunidade tibe-tana. exilada na índia, mas mesmo assim... Talvez a índia fosse a aprendizagem de paciência que eu necessitava, o meu destino, o meu karma.


EM DIU E GOA


O Rajasthan tem uma paisagem muito bonita e as pessoas da área. descendentes de ciganos, vestem-se com cores muito garridas. Fiz um passeio de camelo, de quatro dias, no deserto. O dono ia sentado atrás de m i m e deixava-me conduzir.

Levávamos provisões e um fogarei­ro de querosene, e à noite acampá­vamos, com o camelo por perto, com as duas patas da frente amarradas para não fugir.

Segui então para Gujarat. o Estado onde nasceu o Ghandi e onde fica Diu. Gostei muito de Diu. Tem um ar português, encontram-se lá mui­tas pessoas que ainda falam portu­guês. Comerciantes, por exemplo, gente nas lojas. Gostei mais de Diu do que de Goa. O acesso é muito difícil e a água não é azul porque fica no estuário de um rio, mas a paisagem é maravilhosa. Como vêm poucos turistas ficam conten­tes por receber estrangeiros, especi­almente quando falamos português. Diu é uma ilha pequena e fiz a volta de bicicleta, num dia. Aluguei uma casinha na praia. O dono era de Moçambique. Quando voltava da pesca passava sempre para dar dois dedos de conversa e vendia-me cada lagosta por cinco escudos! As crianças vendiam lenha, que trazi­am em feixes, à cabeça. A noite havia muitos coiotes, que às vezes se aventuravam perto, por isso eu mantinha sempre a fogueira acesa até ir dormir. Uivavam toda a noite c cheguei a ver um. de dia. ao longe, nas dunas.

Dali segui para Bombaim, cidade demasiado grande. Parti no primei­ro barco para Goa. A viagem dura uma noite inteira, com centenas de turistas e indianos a dormirem no chão onde conseguem encontrar espaço. Nessa época usava uma corrente de prata num tornozelo e no meio da noite acordei com uma mão. muito levezinha, a tentar abrir o fecho devagarinho. Esperei uns minutos para ter a certeza de que não estava a sonhar e dei um fortepontapé. Acertei em cheio, mas não houve reclamações... O barco chegou a Pangim. a capital, e tomei vários autocarros para chegar a Arambol. a praia mais a norte. Goa é lindíssima, como paisagem. ião admira que os portugueses tivessem escolhido fixar-se aí. quando chegaram à índia. As praias tão maravilhosas, tropicais. Lembram muito as praias do Brasil. \lias. Goa lembra o Brasil, nas .asas. no ambiente, é a mesma atmosfera colonial. Em Arambol aluguei uma cabana. A praia era muito bonita. Sai-se do mar, anda-se uns duzentos metros e mergulha-se numa lagoa de água doce. Algumas pessoas tinham amarrado uns panos nas árvores, para se proteger. e viviam ali. Um paraíso. Um dia por semana há mercado em Anjuna, que é outra praia. Havia então uma fauna incomparável de hippies, punks e celebridades. Vendia-se de tudo, desde compotas caseiras a heroína. Eu aproveitei para vender alguma roupa que nunca usava e ficar com menos peso na mochila.

Dali segui para Kerala. onde fiz uma parte da viagem de barco -cerca de duzentos quilómetros -pêlos braços de rios e canais que serpenteiam por essa área. Cheguei a outra praia famosa, cha­mada Trivandum, mas havia demasiados turistas indianos embasbacados a olhar para os turistas estrangeiros. Só fiquei alguns dias. apesar de ter encon­trado um quarto em casa duma família local, simpatiquíssima.



BENARES



Fui então para Madutai. onde há o templo mais famoso e imponente do sul. e para Tamil Nailu. Visitei Pondicherry, uma antiga colónia francesa, e de lá continuei para Madrasta, que é uma cidade supor­tável. No sul. os indianos são maisbonitos, tem mais dignidade c mais respeito pêlos estrangeiros. Apreciei não ser agredida o tempo lodo; até os condutores dos rickshaw aceitavam um não e iam-se embora, em vez de insistirem. Gostei também muito da comida do sul, que é servida em folhas de bananeira e deliciosa. São vegetari­anos, o que foi mais fácil para mini - desde o Brasil que eu linha vindo a tentar tomar-me vegetariana. Sem fanatismos, claro. Se eu for a pen­sar em todas as coisas que comi durante esta viagem! Na China, experimentei carne de cão. Dizem que quase não tem sabor, por isso eles temperam-na muito. Achei saboroso, talvez fosse do tempero. Em Macau, experimentei carne de cobra. E deliciosa. Uma coisa hor­rorosa que nas Filipinas acham um petisco é o balud. Comem ao pequeno-almoço. Experimentei também, é horrível. É o ovo quando o pinto começou a formar-se lá dentro. Come-se assim: parte-se um bocado da casca, por cima, e depois chupa-se para dentro da boca tudo o que está dentro do ovo. Cru. É hor­rível. Eu dei uma mastigadela. senti aquelas cartilagens todas, engoli, aquilo chegou aqui à entrada do estômago, voltou para cima. vomi­tei. Na Tailândia experimentei um petisco que se vende às esquinas, como aqui se vendem castanhas assadas: gafanhotos assados na brasa. Não tem sabor.

O meu visto estava a acabar -naquela época só davam por seis meses. Apanhei o comboio directo para Benares. E uma cidade mági­ca, não é por acaso que é cidade sagrada. Os hindus acreditam que quem morrer em Benares e aí for cremado, e as suas cinzas atiradas ao rio Ganges. sairá do ciclo das reincarnações. Ou então terá uma reincarnação muito melhor na pró­xima vida. Por isso Benares está cheia de gente à espera de morrer. Vêm de todos os lados da índia, aos milhares, velhos, doentes, e ficam por ali à espera de morrer. Os mais ricos ficam bem alojados, vêm com a família, os outros ficam na rua. onde calha, nas margens do rio. Há cortejos fúnebres a toda a hora. Não são nada tristes, são bonitos, colori­dos. Os hindus não vêem a morte como uma coisa triste, c uma liber­tação desta vida. Uma passagem para outra vida. De modo que os cortejos têm muitas cores, e eles cantam e dançam, é mais parecido com um carnaval do que com um enterro. Há também os cortejos mais ricos, e os cortejos pobres. Chegam à margem do rio e quei­mam o cadáver. Também conforme o dinheiro da família, assim o tama­nho do monte de lenha que eles conseguem comprar para a incine­ração. As famílias muito pobres compram pouca lenha, e muitas vezes não é suficiente para queimar totalmente o cadáver. De modo que ficam uns bocados, uns restos, que eles atiram ao rio. E há matilhas de cães esfaimados nas margens do rio que se atiram à água para comer esses restos. Juntaram-se ali por causa dessa carne dos cadáveres. Trazem os bocados para terra, bri­gam uns com os outros. E há um cheiro muito especial em Benares. Um cheiro que nunca encontrei noutro lugar, e que reconheceria em qualquer lado: o cheiro da carne humana queimada.

Estava a acabar o tempo do meu visto. Tinha que sair. e deixar pas­sar um tempo até eles me darem outro visto. De modo que de Benares apanhei a camioneta para Kathmandu. no Nepal.


NO HIMALA

De Kathmandu segui a pé para o Everest. Foi uma viagem de 600 quilómetros. Subi até 6.000 metros de altitude. Equipei-me o melhor que podia, e fui seguindo a trilha da montanha. Sim. fui sozinha. De qualquer forma, quase nunca se está sozinha. O Nepal é quase como a índia, há gente por todo o lado. As trilhas estão marcadas e há alber­gues. Nuns sítios só albergues, de vez em quando aldeias, onde se pode ficar. Em todos esses sítios, até lá acima, se pode comer e com­prar bebidas. No Nepal, o transpor­te é todo feito a pé. Por isso. além dos turistas, que já são muitos, há sempre nepaleses para baixo e para cima. a abastecer esses albergues e aldeias. Muitos dos turistas e alpi­nistas, que vão bem equipados, não querem ter o trabalho de carregar a bagagem - e custa, fazer esforços naquela altitude - de modo que con­tratam carregadores. Durante lodo o percurso cruzei-me com filas de pessoas, com grupos grandes. O caminho é difícil de fazer porque a cordilheira do Himalaia está implantada na direcção norte/sul, e como o percurso se faz na direcção leste/oesle está-se constantemente a subir e a descer. De manhã vê-se lá adiante, em linha recta, o ponto onde se vai chegar à tarde. Só que entre o ponto onde se está e aquele onde se vai chegar há uma encosta enorme, íngreme, para descer, um vale, lá em baixo, e outra encosta para subir. É sempre a subir e a des­cer. Eu levava umas botas ténis que não estavam bem justas ao pé. Logo no primeiro dia, na caminhada da descida, os meus pés escorregavam para a frente, dentro das botas, e os dedos foram batendo todo o tempo na ponta das botas. Quando tirei os sapatos à noite tinha os dedos gran­des dos pés negros e infectados debaixo das unhas. Fiz a caminhada toda com dores nos pés, linha que andar devagar. O pior era de manhã, quando me levantava.
Custava-me muito meter os pés dentro das botas, e o começo da caminhada era difícil. Depois os pés aqueciam, a dor atenuava. Como não tinha nada com que me tratar, resolvi improvisar um trata­mento. Nos albergues serviam aguardente, que as pessoas toma­vam para se aquecerem. Eu chega­va à noite, ao albergue, pedia um copo de aguardente aquecida, leva­va para o quarto e metia os dedos dentro da aguardente. Foi um boca­do assustador porque ao princípio quando carregava nas unhas saía muito pus. Mas aos poucos fui melhorando. E quando cheguei a Namche Bazaar, uma aldeia que fica a 5.000 metros, onde havia um posto de enfermagem, fiz um penso e tomei antibióticos. Mas a infecção foi tão grande que as unhas acaba­ram por cair. E nesta aldeia que ficam uns dias as pessoas que vão subir o Everest. para se habituarem à altitude. Para mim, como tinha vindo a pé muito devagar, não foi difícil a habituação, mas tudo era muito cansativo. Ia à casa de banho, que era lá fora. e já tinha que me sentar para recuperar a respiração. Mas havia muita gente interessante e as horas passavam-se depressa, na conversa, sentados ao sol nalguma esplanada.


EM PÂNICO


Entretanto fiquei sabendo que recentemente tinham desaparecido duas mulheres. Não iam as duas juntas, viajavam sozinhas, como eu. Uma australiana e uma canadia­na. Vi as fotografias delas num dos albergues, com a oferta de alvíssa­ras a quem as encontrasse. Eu_tinha encontrado a canadiana na índia, tinha jantado com ela. Aquilo assustou-me um bocado, olhava com atenção as pessoas com quem me cruzava nas trilhas, quando eram grupos achava que não havia grande perigo, de qualquer maneira passava sempre pelo lado de den­tro. As trilhas são estreitas, se se está do lado de fora basta um encontrão para se cair num precipí­cio.

Depois de Namche Bazaar tinha duas hipóteses: ou continuava a subir na direcção do Everest. ou seguia, quase a direito, na direcção dum lago. Tinham-me falado no lago. chama-se Gokyo. e tinham-me dito que a vista do Everest daí. mais à distância, era mais bonita. Como não eslava interessada em recordes de altitude, interessou-me mais a viagem até ao lago. É real­mente um lago lindíssimo, com uma parte gelada e a outra com água dum azul-turquesa deslum­brante. E foi à vinda que apanhei o grande susto da minha vida. Foi a única vez em que fiquei realmente assustada, quase em pânico. De repente, olho para trás e vejo uma pessoa, um homem, a andar na minha direcção. Pensei logo no possível assassino das duas mulhe­res desaparecidas. Comecei a andar cada vez mais depressa, o mais depressa que podia, na esperança de chegar ao albergue antes que ele me alcançasse. Mas ele andava muito depressa, e começou a apro­ximar-se. Numa curva do caminho resolvi esconder-me atrás duns rochedos e deixar que ele me ultra­passasse. Ele passou, muito depres­sa, a olhar em frente, nada preocu­pado em me procurar. Era um japo­nês, e percebi depois, quando che­guei ao albergue, que ele tinha fica­do para trás e tinha vindo, na trilha, a tentar apanhar o seu grupo. O meu "assassino" era afinal um pacato membro duma excursão de turistas japoneses. Regressei a Kathmandu e soube que havia um curso de meditação em inglês, num mosteiro tibetano. Fiquei curiosa e resolvi inscrever-me. Era um curso mais avançado, sobre psicologia tibetana. Eu não sabia, quando che­guei fiquei admirada de ver menos pessoas que o costume - umas oito - com cadernos e lápis. Mas quan­do o Lama começou a falar, senti que finalmente tinha encontrado alguém que "sabia". Foi como se apenas estivesse a recordar coisas esquecidas, como se tivesse volta­do para casa. O visto acabava, mas eu sabia que tinha de voltar para aprender mais com os tibetanos e a sua filosofia de vida. Voltei para a Tailândia, para Koh Phagan, para descansar.

Quando voltei à ilha a minha caba­na tinha sido demolida. Já tinha começado o desenvolvimento turís­tico, a praia já estava bastante dife­rente. Fui viver para o mosteiro. Vivi aí quatro meses. Foi um tempo óptimo. Continuei a fazer meditação, ajudava no trabalho do mosteiro. E o mosteiro tinha uma biblioteca óptima, com muitos livros em inglês, comecei a interes­sar-me cada vez mais pela filosofia budista. O dinheiro que eu tinha junto na Austrália estava a acabar. Tinha o dinheiro à justa para com­prar uma passagem de regresso à Europa, e tinha que tomar uma decisão. Ali. na Tailândia, não havia possibilidades de emprego, nem tinha hipóteses de continuar a viagem a bordo de veleiros. Por isso, ou me vinha embora, ou continuava a gastar o dinheiro que res­tava e arriscava-me a ficar sem meios para sair dali. Mas eu tinha saído da índia com a ideia de vol­tar, sabia que faziam cursos para estrangeiros que duravam um mês no mosteiro da comunidade tibeta­na, em Kathmandu, e cada vez mais sentia vontade de ir fazer esse curso. Resolvi então escrever para um amigo meu. o americano que viajara comigo no veleiro de Fidji à Austrália. Tínhamos ficado amigos, ele tinha-me dito que, se precisas­se, lhe escrevesse. Escrevi, e fiquei à espera de resposta. E um dia, fui a um restaurante e encontrei-o. Ele estava, ali mesmo, na ilha. Não tinha recebido a minha carta, já tinha saído dos Estados Unidos quando eu lhe escrevi, tinha resol­vido vir visitar-me. Emprestou-me o dinheiro, comprei uma passagem para Calcutá, que era a mais barata. A minha ideia era aproveitar e via­jar pelo Nepal, voltar a Kathmandu e ir então para o mos­teiro tibetano.

OUTRO OCEANO


Fiz o curso de um mês, e gostei muito. A seguir, fiz um curso mais longo. Queria ficar, mas estava outra vez com o dinheiro no fim. A partir daí as coisas foram aconte­cendo. Em Kathmandu, quando já estava disposta a vir-me embora, encontrei uma amiga colombiana -que conhecera quando estive na Colômbia. Ela emprestou-me dinheiro, disse-me que lhe pagasse quando pudesse. Um dia, estava sentada numa esplanada em Kathmandu com uns amigos que também tinham feito o curso no mosteiro. Eles estavam a preparar-se para virem embora. Um deles foi trocar dinheiro e, quando voltou, contou o dinheiro e disse: "Enganaram-se, deram-me cem dólares a mais". Eu disse-lhe que. se não precisava daqueles cem dólares, que mós emprestasse. Ele respondeu que me dava o dinheiro e que um dia, quando eu pudesse e encontrasse alguém que precisasse de dinheiro, que desse cem dólares a essa pessoa.

Com o dinheiro emprestado pela minha amiga colombiana e esses cem dólares consegui ficar mais quatro meses. Fiz um curso de ioga na índia, comprei coisas de artesa­nato indiano e nepalês para trazer e vender na Europa, e comprei a pas­sagem de volta. Para Atenas, por­que era a passagem mais barata. Saí dali com a ideia que encontrara o meu caminho. Voltava à Europa para arranjar dinheiro para regressar à comunidade tibetana e conti­nuar ali os meus estudos. Comecei uma viagem à volta do mundo, aca­bei fazendo uma viagem no mundo interior.

Saí do avião em Atenas sem um tostão. Fui directamente para a rua, perto do Parthénon, vender as coi­sas que tinha trazido. A Grécia é o único país da Europa onde não é. ou pelo menos não era, preciso licença para vender na rua. Tive sorte, era Agosto e havia muitos turistas. Vendi tudo. Juntei dinhei­ro, fui para a Alemanha. Fiquei na casa dum amigo, esperava encon­trar emprego facilmente, mas as coisas estavam difíceis na Alemanha. Acabei por encontrar emprego, através dum jornal ale­mão, para ir trabalhar na Córsega, para um clube de férias. Fiquei aí quatro meses, até ao fim da época. Com o dinheiro que juntei regressei finalmente a Portugal. Passado um mês voltei a Mcleod Granj, Dharamsala. É onde moro agora. Estudo filosofia e língua tibetana, no mosteiro e no centro internacional para estudos tibeta­nos, que faz parte duma universida­de indiana. Somos cerca de trinta estrangeiros a fazer estes estudos em tempo completo, mas muita gente vem assistir, às vezes por um mês. Eu sou a única portuguesa, o resto são sobretudo americanos, suíços, franceses.

É uma pequena vila a 2000 metros de altitude, há uma população indi­ana, mas a maioria são os refugia­dos tibetanos, pois é ali que vive o chefe político e espiritual deles - o Dalai Lama. O ambiente é total­mente tibetano. As ruas estão chei­as de monges vestidos com o traje vermelho escuro e ao fim da tarde vamos todos passear à volta da casa do Dalai Lama. um ritual divertido. Depois de ele ter recebi­do o Prémio Nobel, cada vez mais gente o vem visitar. Por isso, nesta aldeia perdida no Himalaia, tenho a oportunidade de encontrar cientis­tas, políticos, artistas de cinema, de todo o mundo.

Ás vezes tenho vontade de ir ver outros lugares, tenho saudades dos coqueiros e do oceano, mas depois penso que vivo ao lado de outro oce­ano, o do saber - Dalai Lama quer dizer "oceano de discernimento".•








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